A Venezuela que eu vi

Eu e meus amigos no Bicicafé Descapada, na Praça da Juventude, em Caracas.

Estive em Caracas na última semana de julho para participar do evento “Vozes de Um Novo Mundo”, organizado pelo governo venezuelano. Comunicadores de todo o Sul Global foram convidados, incluindo representantes da África, América Latina, Rússia, Oriente Médio e China.

Público presente no evento sobre mídia organizado pelo governo venezuelano.

A experiência me proporcionou encontros com colegas de imprensa de diferentes continentes. Conheci a jornalista iraniana Sahar Imami, que se tornou célebre internacionalmente ao continuar apresentando seu programa IRINN (Islamic Republic of Iran News Network) mesmo durante um ataque israelense ao complexo de estúdios da emissora em Teerã, em 16 de junho de 2025. Mesmo após a explosão que deixou o estúdio às escuras e parte do prédio em escombros, Imami retornou ao ar para concluir a transmissão.

A jornalista iraniana que se tornou celebridade internacional ao continuar apresentando seu programa durante bombardeios.

Também encontrei o jornalista iraquiano Muntadhar al‑Zaidi, famoso por atirar seus sapatos em George W. Bush durante uma conferência de imprensa em Bagdá, em 14 de dezembro de 2008, proclamando: “Este é um beijo de despedida do povo iraquiano, seu cachorro”. Ele foi preso e, inicialmente, condenado a três anos, mas acabou cumprindo cerca de nove meses de prisão.

O jornalista iraquiano que ficou famoso por atirar sapatos em George Bush, presente no evento em Caracas.

Conversei igualmente com dois jornalistas africanos – um da Guiné Equatorial e outro da República Democrática do Congo – que enfrentaram uma jornada exaustiva de três dias para chegar à Venezuela. O roteiro incluiu escalas na Etiópia, Turquia (com mais de 20 horas de espera) e Cuba, uma verdadeira odisseia que ilustra as dificuldades enfrentadas por profissionais de países com infraestrutura limitada.

Jornalistas africanos que participaram do evento sobre mídia em Caracas.

No entanto, a viagem foi especialmente valiosa por outro motivo. Esta não era minha primeira vez na Venezuela. Estive aqui em junho de 2015, quando acompanhei um grupo de brasileiros articulados por movimentos sociais para fazer contraponto à narrativa de senadores que tentavam visitar Leopoldo López na prisão. Naquela ocasião, porém, não tive tempo suficiente para conhecer verdadeiramente o país e sua capital, nem para interagir com a população local. Encontrei então um país em período mais sombrio, com a instabilidade política ainda reverberando das “guarimbas” de 2014.

Desta vez, consegui dedicar tempo para explorar as ruas de Caracas sozinho, frequentar restaurantes e supermercados, analisar preços, visitar shoppings e cafés, conversar com populares e observar a vida nas praças públicas. Encontrei uma capital bem mais tranquila, reflexo de um momento político mais estável no país.

Descobri uma metrópole bonita, arrumada e segura, apesar dos engarrafamentos (típicos de toda cidade grande), com vida econômica intensa. Não observei sinais de pobreza nas ruas, pessoas passando fome ou mendigos. O que vi foram prédios bem conservados, praças cuidadas, ruas bem asfaltadas e carros novos circulando.

O sistema de transporte público funciona muito bem. O metrô de Caracas é limpo, organizado e extremamente barato – uma passagem custa apenas 15 bolívares (cerca de US$ 0,23 ou R$ 1,24). Para dimensionar essa diferença: no Rio de Janeiro a tarifa é de R$ 7,90 e em São Paulo R$ 5,20, tornando o transporte carioca mais de seis vezes mais caro e o paulistano quatro vezes superior ao venezuelano.

Mapa do sistema de metrô de Caracas.

Da mesma forma, outros custos básicos impressionam pela diferença. A gasolina custa apenas US$ 0,50 por litro (cerca de R$ 2,70), menos da metade do valor médio brasileiro que gira em torno de R$ 5,60 a R$ 6,20 por litro. Já uma pizza grande com refrigerante, que custa US$ 12 (cerca de R$ 65), está mais alinhada com os preços brasileiros, ficando compatível com o que se paga em pizzarias tradicionais de capitais como Rio e São Paulo.

Posto da PDVSA em Caracas mostrando preço de US$ 0,50 por litro (~R$ 2,70), menos da metade do valor médio brasileiro de R$ 5,60 a R$ 6,20.
Pizzaria em Caracas. O combo pizza grande + refrigerante 2L custa US$ 12 (~R$ 65), preço similar ao praticado em pizzarias tradicionais do Brasil.

Durante uma tentativa de trocar dinheiro numa loteria, conheci um senhor uruguaio (que mora há uns 20 ou 30 anos em Caracas) que se emocionou ao saber que eu era brasileiro. Ele havia visitado o Brasil décadas atrás durante o Carnaval e guardava memórias afetuosas do país. Descobri que ele havia sido jornalista e escrito um artigo famoso intitulado “Não voto por Chávez” – uma peça retórica sofisticada onde explicava que votaria nas missões sociais, nos programas de infraestrutura e em tudo que Chávez havia feito para transformar a Venezuela, e não apenas pela figura pessoal do presidente.

O jornalista uruguaio que escreveu o famoso artigo “Não voto por Chávez” e me ajudou a trocar bolívares para pagar o metrô.

Passei horas lendo no Bicicafé Descapada, na Praça da Juventude, Avenida Bolívar, próximo à Galeria de Arte Nacional. O estabelecimento, cheio de bicicletas, também aluga bikes e promove passeios por Caracas. Ali observei jovens gravando vídeos para TikTok, praticando esportes, andando de patins, pedalando e brincando de skate nesta importante praça do centro de Caracas.

🎥 Clique aqui para assistir ao vídeo da Praça da Juventude em Caracas

Bicicafé Descapada na Praça da Juventude, onde passei horas lendo em Caracas.
Bar em Caracas onde li um livro e tomei uma cerveja.
Praça Diego Barras, centro do poder político em Caracas.

Uma característica marcante é como a Venezuela mantém políticas do período chavista que realmente funcionam. O combustível é extremamente barato – fotografei os preços para comprovar. Essa política, junto com o transporte público acessível, facilita a mobilidade urbana e reduz custos de vida.

Tive a oportunidade de encontrar Bruno Falci, meu amigo brasileiro que trabalha na Telesur (além de correspondente aqui no Cafezinho), acompanhado de sua amiga Yoleny Useche, gerente de comunicações e chefe de imprensa da área de Agitação, Propaganda e Comunicação do PSUV.

Miguel do Rosário, editor do Cafezinho, Bruno Falci, jornalista brasileiro na Telesur, e Yoleny Useche, comunicadora do PSUV, num café em Caracas.

Durante uma caminhada noturna de volta ao hotel, vivi o único incidente negativo da viagem. Uma pessoa desequilibrada me atacou numa rua mais deserta, mas consegui me defender e sair da situação sem ferimentos. O episódio serviu para me lembrar que em Caracas, por mais segura que seja, como em qualquer cidade grande do mundo, é preciso ter cuidado ao andar à noite.

No aeroporto de Caracas, provei arepas deliciosas que deixaram saudades. O aeroporto é funcional e limpo, embora mereça uma estrutura maior considerando o tamanho e a população da cidade.

Foto de Simón Bolívar no aeroporto de Caracas, símbolo da identidade nacional venezuelana.

A Venezuela que encontrei contradiz frontalmente a narrativa predominante na mídia brasileira e internacional. Não é o país em colapso que costuma ser retratado. Há problemas, certamente, como em qualquer nação, mas também há vida normal: pessoas trabalhando, estudando, se divertindo, uma economia funcionando e um comércio ativo.

As sanções americanas causaram danos reais, mas o país se adaptou e encontrou soluções. De alguma forma, houve um acomodamento cambial mais eficiente. O governo demonstra pragmatismo, longe da imagem de ditadura inflexível que frequentemente se propaga.

Caracas me surpreendeu positivamente. É uma cidade vibrante que, assim como toda a Venezuela, conseguiu encontrar um espaço no mundo para se desenvolver, para vender e comprar produtos, expandindo suas possibilidades. Vale a pena conhecer para formar uma opinião própria, baseada na experiência direta, não em narrativas pré-concebidas.

Minha experiência me deixou ainda mais convicto de que o Brasil deve defender a entrada da Venezuela nos Brics, porque este será um espaço importante para o país se defender dos ataques imperialistas dos Estados Unidos.

Arte urbana em Caracas

Arte urbana em muro de Caracas, mostrando a expressão cultural da cidade.
Grafite com a imagem do presidente Maduro em Caracas.

Símbolos nacionais e Bolívar

Frase de Simón Bolívar em parede de Caracas, parte da identidade histórica venezuelana.
Fachada de ministério em Caracas com referência a Simón Bolívar.

Outras imagens de Caracas

Ônibus no centro de Caracas, parte do sistema de transporte público da cidade.
Preços do Burger King em Caracas. Os sanduíches principais custam entre 70% a 100% mais caro que no Brasil quando convertidos para reais.
Grupo de jornalistas brasileiros que participaram do evento em Caracas. Da esquerda para direita, Yuri Ferreira (Forum), David Nogueira (DCM), Leo Sobreira (Brasil 247) e eu (O Cafezinho).

🎥 Clique aqui para assistir ao vídeo da dança na Praça Bolívar

Na Praça Bolívar, no centro histórico de Caracas, ao lado da casa onde nasceu Simón Bolívar, vi populares participando de uma espécie de curso livre de dança.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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