Manifestantes da Geração Z desafiaram bloqueio das redes e corrupção, mas enfrentaram gás lacrimogêneo, balas de borracha e repressão violenta
Katmandu não ardeu apenas pelo fogo de uma ambulância incendiada. Katmandu ardeu pela fogueira da desesperança. Nesta segunda-feira, o Nepal, um país cuja história recente é marcada pela luta pela democracia, viu essa mesma democracia definhar sob o fogo da repressão e o bloqueio do debate. A notícia de que 19 vidas, na flor da idade, foram ceifadas durante protestos é mais do que uma estatística trágica; é um epitáfio para a paciência de uma geração. São 19 gritos que ecoam não apenas contra o bloqueio autoritário das redes sociais, mas contra a podridão silenciosa da corrupção e a falência de um projeto de nação.
Os manifestantes, autointitulados “Geração Z”, não carregavam armas, mas bandeiras e cartazes. Seus escudos não eram de metal, mas de ideais: “Acabem com a corrupção e não com as mídias sociais”, liam-se em suas mãos. A resposta do Estado, no entanto, foi a linguagem primitiva do poder: gás lacrimogêneo, balas de borracha disparadas “indiscriminadamente” – segundo relatos das vítimas – e cassetetes. A cena de jovens, muitos ainda com uniformes escolares, improvisando ambulances com motocicletas para salvar seus companheiros feridos é a imagem mais crua e poderosa de uma sociedade que o seu próprio governo abandonou à própria sorte. Enquanto isso, o aparato estatal se fechava em torno do parlamento, protegendo edifícios em vez de proteger pessoas.
O estopim do bloqueio das redes é, em si, uma cortina de fumaça. A justificativa de combater “notícias falsas e fraudes” soa como uma piada de mau gosto vinda de uma classe política que não consegue sequer entregar um governo estável. Desde a abolição da monarquia em 2008, o Nepal teve 14 governos, nenhum capaz de completar um mandato. O primeiro-ministro KP Sharma Oli, de 73 anos, em seu quarto mandato, parece mais um figurante em uma rotação de poder sem sentido do que um líder capaz de ouvir o clamor das ruas. A renúncia do ministro do Interior, uma “responsabilidade moral” que chega tarde demais, não apaga o sangue já derramado.
A verdadeira questão que o governo tenta silenciar, literalmente, ao cortar as plataformas digitais, é a da corrupção endêmica e da ausência crônica de oportunidades. O bloqueio das redes não é sobre proteger os cidadãos; é sobre proteger os poderosos. É o pânico de uma elite envelhecida e desconectada diante da capacidade de organização e denúncia de uma juventude hiperconectada. Ao fechar as torneiras do debate online, o governo esperava calar a voz da rua. O que não previu foi que o desespero, quando canalizado, transborda e torna-se fúria.
Neste contexto global de cerco às Big Tech, é crucial discernir entre a regulação necessária para proteger dados e combater a desinformação, e a censura pura e simples, que usa esses argumentos legítimos como pretexto para calar dissidências. O Nepal escolheu o caminho mais fácil e mais perigoso: o do silêncio forçado. A advertência da Human Rights Watch é um farol em meio a essa tempestade: protestos devem ser geridos com cautela, não apenas com balas. A força letal é o último recurso de um Estado que esgotou todos os seus argumentos democráticos.
A raiva que incendeia as ruas de Katmandu, Itahari e Pokhara é a mesma que arde em tantas praças ao redor do mundo. É a revolta dos que são excluídos do presente e veem seu futuro ser hipotecado pela incompetência e ganância de uns poucos. A “Geração Z” nepalesa não está protestando por um privilégio; está protestando por um direito básico: o direito de ser ouvida, de ter perspectivas e de viver em uma sociedade onde a justiça não seja um slogan de campanha eleitoral, mas uma prática de governo.
As 19 mortes são uma tragédia anunciada. São o resultado previsível de um sistema político frágil que, incapaz de se sustentar no diálogo e na justiça, recorre ao único argumento que lhe resta: a violência. O sangue da juventude nepalesa é um lembrete sombrio para todas as nações: uma democracia que teme a voz de seu povo e que atira em seus filhos é uma democracia de fachada, cujo colapso é apenas uma questão de tempo. O verdadeiro bloqueio que precisa ser derrubado no Nepal não é o das redes sociais, mas o da esperança. E nenhuma bala de borracha é capaz de calar esse anseio por um futuro digno.