Direita americana promete vingança em nome de Kirk

Apelos à retaliação e à repressão da esquerda política reforçam o sentimento de polarização no país / The White House

O assassinato de Charlie Kirk se tornou combustível para discursos de retaliação e ampliou o clima de polarização que sufoca a democracia americana


A morte violenta de Charlie Kirk, ativista conservador e figura influente na política americana, mergulhou o país em um clima de tensão ainda maior. Em vez de gerar momentos de silêncio ou reflexão, como alguns poderiam esperar diante da tragédia, o episódio rapidamente se transformou em combustível para uma nova onda de ataques verbais e apelos à retaliação contra a esquerda política.

Nas horas seguintes ao crime, a blogosfera de direita entrou em ebulição. Um influenciador escreveu que os liberais tinham “sangue nas mãos”. Elon Musk, por sua vez, classificou a esquerda como o “partido do assassinato”. E um blogueiro chegou a defender que todo político democrata “deve ser preso e o partido banido”. A retórica agressiva se espalhou com velocidade, reforçando o clima de polarização que domina os Estados Unidos.

O temor de que a tragédia seja usada como justificativa para endurecer medidas contra opositores cresceu ainda mais diante do posicionamento do ex-presidente Donald Trump. Conhecido por ultrapassar limites institucionais, Trump foi apontado por especialistas como alguém disposto a transformar o episódio em pretexto para ampliar poderes e enfraquecer adversários.

“Trump claramente tem um dedo no gatilho leve quando se trata de declarar estado de emergência e burlar normas, leis e até mesmo a Constituição”, alertou Steven Levitsky, professor de governo da Universidade Harvard e coautor do livro How Democracies Die. Para ele, a situação pode abrir espaço para “tropas nas ruas” e iniciativas de perseguição à oposição política.

Esses receios foram reforçados em um pronunciamento televisionado na quarta-feira à noite. Antes mesmo de o atirador ser identificado ou de qualquer motivação confirmada, Trump atribuiu o assassinato à esquerda radical. “Durante anos, a esquerda radical comparou americanos maravilhosos como Charlie a nazistas e aos piores assassinos em massa e criminosos do mundo”, declarou. “Esse tipo de retórica é diretamente responsável pelo terrorismo que vemos em nosso país hoje, e precisa acabar agora mesmo.”

No dia seguinte, o tom não mudou. “Temos um grupo radical de lunáticos de esquerda por aí, simplesmente lunáticos, e vamos resolver esse problema”, disse Trump, endurecendo ainda mais seu discurso.

Alguns de seus aliados no Congresso foram além. A deputada republicana Nancy Mace, da Carolina do Sul, afirmou diretamente: “Os democratas são responsáveis pelo que aconteceu hoje”.

A postura do ex-presidente gerou críticas entre acadêmicos e analistas. Donald Moynihan, professor de políticas públicas na Universidade de Michigan, lamentou a oportunidade perdida pela Casa Branca. “Trump poderia ter usado seu discurso no Salão Oval para condenar todas as formas de violência política e enfatizar a importância da tolerância como uma pedra angular da democracia. Mas ele não fez isso”, avaliou. “O pior cenário é que o assassinato de Kirk seja usado para justificar uma repressão governamental à liberdade de expressão.”

O tom mais duro também se estendeu ao cenário internacional. O vice-secretário de Estado, Christopher Landau, anunciou que estrangeiros que “elogiassem, racionalizassem ou menosprezassem” o assassinato de Kirk não seriam considerados “visitantes bem-vindos ao nosso país”, sinalizando um cerco diplomático em nome da defesa da memória do ativista.

O caso de Charlie Kirk se soma a uma série de ataques que, nos últimos anos, têm atingido figuras políticas tanto da direita quanto da esquerda. A escalada da violência, refletida no discurso inflamado de líderes e influenciadores, expõe uma sociedade cada vez mais dividida e vulnerável a explosões de ódio.

O assassinato, em vez de unir, aprofunda feridas já abertas. Em um momento em que o país poderia buscar saídas pela moderação, cresce o risco de que a tragédia se torne mais um marco no ciclo de radicalização que ameaça a estabilidade democrática dos Estados Unidos.

O assassinato de Charlie Kirk ocorre em um momento em que a violência política já vinha marcando a vida pública dos Estados Unidos. O próprio Donald Trump sobreviveu a uma tentativa de assassinato durante um comício no ano passado. Mais recentemente, em junho, uma deputada estadual democrata em Minnesota e o marido dela foram mortos dentro de casa. Em abril, a residência do governador democrata da Pensilvânia, Josh Shapiro, foi incendiada enquanto ele e sua família estavam lá dentro.

Embora o país tenha histórico de episódios sangrentos — a década de 1960 foi marcada por uma série de assassinatos de figuras políticas, acompanhada de protestos urbanos e conflitos raciais —, especialistas afirmam que o atual cenário é distinto. O diferencial, segundo eles, está no contexto: a consolidação da influência de Trump sobre instituições cruciais e a ampliação sem precedentes dos poderes da presidência.

“É nesse momento que um presidente agressivo, agindo em uma direção agressiva, pode ser perigoso”, avaliou Julian Zelizer, professor de história política na Universidade de Princeton. “Há literalmente tropas federais nas ruas das cidades americanas, e Trump está usando a força federal sempre que quer.”

Essa percepção de risco foi amplificada pela retórica de influenciadores conservadores que passaram a traçar paralelos diretos entre a morte de Kirk e episódios históricos sombrios. Muitos compararam o assassinato ao incêndio do Parlamento alemão em 1933, usado pelos nazistas como justificativa para perseguir opositores e desmontar liberdades constitucionais.

“O assassinato de Charlie Kirk é o incêndio do Reichstag americano”, declarou Matt Forney, escritor e blogueiro de direita. Em sua avaliação, o momento deveria marcar o início de uma repressão ampla e sem precedentes contra a esquerda. “Os políticos democratas deveriam ser presos e o partido banido. É hora de uma repressão total à esquerda”, afirmou.

Vozes influentes próximas ao círculo de Trump reforçaram esse tom. Katie Miller, esposa do vice-chefe de gabinete da Casa Branca, Stephen Miller, publicou em suas redes sociais: “Vocês nos chamaram de Hitler. Vocês nos chamaram de nazistas. Vocês nos chamaram de racistas. Vocês têm sangue nas mãos.”

Até mesmo lideranças republicanas tradicionalmente vistas como mais moderadas aderiram ao discurso de responsabilização da esquerda. O congressista Warren Davidson, de Ohio, disse em entrevista à CNN que a escalada da violência política está ligada à maneira como liberais desumanizam adversários. “Quando perdem o debate, não conseguem se concentrar em fatos e argumentos”, criticou. “Eles apelam para insultos — dizendo que alguém deve ser racista, intolerante, misógino ou um nacionalista cristão.”

O retrato que emerge, portanto, é o de um país em ebulição, em que cada novo ato de violência é imediatamente instrumentalizado como munição na guerra cultural e partidária. Para especialistas, o risco é que, em vez de buscar um pacto de convivência democrática, a tragédia de Kirk aprofunde ainda mais a lógica de confronto que já corrói a vida política americana.

Alguns analistas ressaltam que a atmosfera incendiária não pode ser atribuída a apenas um campo político. Para eles, a responsabilidade de conter a escalada de ódio é compartilhada. “Os líderes democratas também precisam conter os vídeos alegres no X celebrando o assassinato de Charlie Kirk”, afirmou Robert Pape, professor de ciência política da Universidade de Chicago. “Ambos os grupos de líderes têm trabalho a fazer para conter seus eleitores.”

Mas até agora, os sinais caminham em direção oposta. Para Steven Levitsky, da Universidade de Harvard, os dois principais partidos dos Estados Unidos se encontram em um nível de antagonismo sem precedentes, tratando-se não mais como rivais legítimos, mas como inimigos irreconciliáveis. “Os partidos estão se acusando mutuamente de comportamento desleal e antipatriótico, de uma forma que lembra a Espanha dos anos 1930, pouco antes do colapso do sistema democrático”, avaliou.

Esse cenário, segundo ele, é alarmante. “Quando duas partes se veem como uma ameaça existencial, a tentação de se envolver em comportamentos violentos e ilegais é muito alta. E o assassinato de Kirk pode reforçar isso.”

O episódio, que poderia servir como alerta para um esforço coletivo de reconciliação nacional, acabou se tornando mais um catalisador de divisão. Em vez de unir, a tragédia alimentou o ciclo de hostilidade e desconfiança que atravessa a política americana.

Seja nas declarações de líderes, nos discursos inflamados ou nas redes sociais, o assassinato de Charlie Kirk expõe um país à beira de um abismo: dividido, radicalizado e com sua democracia posta à prova pela violência que insiste em se repetir.

Com informações de Financial Times*

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