O incidente reacende discussões sobre limites do poder israelense e o papel dos EUA como mediador, em um momento de negociações de paz ameaçadas
O mundo assistiu, mais uma vez, à violência desmedida de um Estado que há décadas age com impunidade no cenário internacional: Israel. Desta vez, o alvo foi Doha, capital do Catar — uma nação soberana, aliada dos Estados Unidos e, acima de tudo, mediadora incansável pela paz em um dos conflitos mais brutais do nosso tempo. Em pleno coração de uma capital diplomática, aviões de guerra israelenses lançaram um ataque aéreo contra supostos membros da liderança do Hamas, matando seis pessoas, incluindo um oficial de segurança catariano e membros da escolta da delegação palestina. O ato não foi apenas uma violação flagrante do direito internacional — foi um tapão na cara da diplomacia, um gesto de desprezo pela vida humana e um sinal de que, para Israel, nenhum território é sagrado demais para ser bombardeado, desde que sirva à sua lógica de vingança e dominação.
E diante desse ato de agressão unilateral contra um aliado dos EUA, qual foi a reação do então presidente Donald Trump? Segundo a secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, ele se sentiu “muito mal”. Sim: “muito mal”. Não indignação. Não condenação. Não suspensão de ajuda militar. Apenas um vago e quase patético sentimento de desconforto — o mesmo tipo de linguagem que se usa ao derramar café na camisa antes de uma reunião importante. Enquanto civis eram mortos em solo de um país parceiro, a Casa Branca limitou-se a classificar o ataque como “infeliz” — como se fosse um equívoco de agenda, não um crime de guerra em potencial.
Essa reação pífia não é acidental. É sintomática. Trump, cuja presidência foi marcada por uma subserviência sem precedentes ao governo de extrema direita de Israel, nunca escondeu sua cumplicidade com as políticas expansionistas, coloniais e violentas de Tel Aviv. Foi ele quem reconheceu unilateralmente Jerusalém como capital de Israel, ignorando décadas de consenso internacional e os direitos do povo palestino. Foi ele quem cortou bilhões em ajuda humanitária à Autoridade Palestina. Foi ele quem moveu a embaixada dos EUA para Jerusalém, transformando um ato diplomático em provocação ideológica. E agora, diante de um ataque israelense em pleno território de um aliado árabe dos EUA, sua única resposta é “sentir-se mal”?
A hipocrisia é ainda mais gritante quando se considera o discurso oficial. Leavitt afirmou que o Catar é um “forte aliado e amigo” que “está trabalhando arduamente para assumir corajosamente riscos conosco para negociar a paz”. Então, por que não houve uma condenação enérgica? Por que não houve ameaça de revisão da ajuda militar a Israel — que, ano após ano, recebe mais de US$ 3,8 bilhões dos contribuintes norte-americanos, muitos deles trabalhadores que mal conseguem pagar o aluguel? Por que não houve exigência de investigação independente? Porque, na prática, a aliança dos EUA com Israel sempre foi mais forte do que sua aliança com a justiça — e Trump, mais do que qualquer outro presidente recente, encarnou essa desumanidade com entusiasmo.
O ataque em Doha não foi um “erro de mira”. Foi um ato calculado de intimidação. Ao bombardear uma capital que abriga negociações de paz, Israel envia uma mensagem clara: não quer solução diplomática. Quer manter o Hamas — e, por extensão, todo o povo palestino — sob constante ameaça, mesmo fora das fronteiras de Gaza. Quer desestabilizar qualquer tentativa de mediação que não passe pelo seu controle absoluto. E, pior ainda, quer demonstrar que pode agir com total impunidade, mesmo em países que os próprios EUA consideram parceiros estratégicos.
É importante lembrar: o Catar não é um Estado hostil. Pelo contrário. Tem servido como ponte essencial entre Israel, os palestinos e a comunidade internacional. Foi em Doha que delegações do Hamas e de outros atores regionais se reuniram para discutir cessar-fogo, troca de prisioneiros e reconstrução de Gaza — uma região que, sob o bloqueio israelense há quase duas décadas, vive em estado permanente de catástrofe humanitária. Atacar esse espaço de diálogo não é “combater o terrorismo”. É sabotar a paz.
E o mais revoltante? Enquanto Israel mata civis em Doha e mantém 2,3 milhões de palestinos em Gaza sob cerco, fome e bombardeios incessantes, líderes ocidentais continuam a repetir, como um mantra vazio, que “Israel tem o direito de se defender”. Mas ninguém pergunta: e os palestinos? Eles não têm direito a viver? A ter água potável? A enviar seus filhos à escola sem medo de que um míssil os mate no caminho? A ter um Estado soberano, como prometido pela ONU em 1947? A resposta, na prática, é não. Porque, para o establishment ocidental — e especialmente para figuras como Trump —, a vida palestina não tem o mesmo valor.
A declaração da Casa Branca, com sua linguagem suave e sua ausência total de consequências, revela a verdadeira face da política externa dos EUA: alianças seletivas, moralidade condicionada e impunidade garantida para aliados que servem aos interesses imperiais. Enquanto países como a Venezuela ou o Irã são punidos com sanções brutais por atos menores, Israel pode invadir, bombardear e assassinar — até em capitais aliadas — e ouvir apenas um “sentimos muito” da maior potência militar do mundo.
Mas o povo do Catar, o povo palestino e todos os que lutam por justiça no Oriente Médio não precisam de “sentimentos ruins”. Precisam de ação. Precisam de solidariedade concreta. Precisam que o mundo reconheça que bombardear a paz não é defesa — é agressão. E que governos como o de Trump — que falam de “força” mas se calam diante da barbárie — são cúmplices silenciosos de cada vida perdida.
Que o sangue derramado em Doha não seja apagado por eufemismos diplomáticos. Que sirva como um chamado urgente: chega de impunidade para Israel. Chega de subserviência dos EUA. Chega de tratar a vida árabe como descartável. A verdadeira segurança não vem de bombas, mas de justiça. E enquanto essa justiça não for restaurada, nenhum “sentimento ruim” será suficiente para lavar as mãos da história.