Em tempos de polarização, a China prova que a soberania não se negocia, e que cooperação verdadeira nasce do respeito mútuo
Em tempos de crescente polarização geopolítica, onde o discurso da “segurança nacional” serve como pretexto para ingerência e controle, o encontro entre o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Scott Bessent, e o vice-primeiro-ministro chinês, He Lifeng, em Madri, em setembro passado, revela mais do que meras negociações comerciais. Revela uma luta silenciosa — mas intensa — entre duas visões de mundo: uma que insiste em impor sua hegemonia tecnológica e financeira sob o manto da moralidade seletiva, e outra que busca, com firmeza e dignidade, preservar sua soberania diante de um império em crise.
Os Estados Unidos, liderados por um governo que oscila entre o populismo autoritário de Donald Trump e as políticas neoliberais de fachada humanitária, continuam a utilizar seu poder econômico como arma de coerção. O encontro em Madri, embora descrito como uma tentativa de “manter a trégua comercial”, é, na verdade, mais um capítulo de uma estratégia de contenção contra a ascensão chinesa — não por ameaças reais à segurança global, mas por medo de perder o monopólio sobre o futuro tecnológico, financeiro e político do planeta.
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A chantagem sobre o TikTok: um ataque à soberania digital
Nada simboliza melhor essa ofensiva do que a obsessão norte-americana pelo TikTok. A exigência de que a plataforma chinesa se torne “de propriedade americana” sob pena de banimento não é uma medida de segurança cibernética — é um ato de imperialismo digital. Os EUA, que há décadas espionam governos, empresas e cidadãos de todo o mundo — como revelado por Edward Snowden e confirmado por incontáveis vazamentos —, agora se apresentam como guardiões da privacidade digital, enquanto exigem o controle de uma das poucas plataformas globais não subordinadas ao Vale do Silício.
A ironia é grotesca: Trump, que recentemente abriu uma conta no TikTok para se promover, agora ameaça banir a plataforma que ele mesmo utiliza. Isso não é coerência — é hipocrisia institucionalizada. A exigência de alienação forçada de ativos chineses nos EUA viola os princípios básicos do comércio justo e da autodeterminação nacional. É uma forma moderna de colonialismo econômico, disfarçada de “proteção da democracia”.
A China, por sua vez, resiste. Não por teimosia, mas por princípio. A soberania digital é parte inseparável da soberania nacional. Permitir que Washington decida quem pode ou não operar no mercado global com base em interesses geopolíticos é abrir caminho para a subjugação tecnológica de todas as nações do Sul Global. O TikTok é apenas o primeiro alvo; amanhã será a Huawei, depois a BYD, depois qualquer empresa que ouse competir com o establishment corporativo norte-americano.
Comércio desigual e o protecionismo hipócrita
Enquanto acusam a China de “não cumprir acordos”, os EUA impõem tarifas médias de 55% sobre produtos chineses — incluindo até mesmo o fentanil, uma substância cuja crise de uso é inteiramente doméstica e gerada pelo próprio sistema de saúde americano. Essa tarifação punitiva não visa equilibrar o comércio; visa sufocar a indústria chinesa e forçar concessões unilaterais.
Pior ainda é a acusação de que a China “desvia” compras agrícolas para o Brasil e a Argentina. Em vez de reconhecer que os produtores latino-americanos oferecem melhores condições, preços e relações comerciais mais justas, Washington prefere culpar Pequim por exercer seu direito soberano de escolher parceiros comerciais. É o velho discurso do império: “você só pode comprar de mim, mesmo que eu cobre mais e ofereça menos”.
Enquanto isso, os próprios EUA mantêm subsídios agrícolas bilionários que distorcem o mercado global e empobrecem agricultores em países em desenvolvimento. O protecionismo norte-americano não é “desenfreado”, como acusa Pequim com razão — é estrutural, sistemático e profundamente hipócrita.
Lavagem de dinheiro e a instrumentalização da segurança
A inclusão do combate à lavagem de dinheiro na pauta de Madri também merece escrutínio crítico. Não há dúvida de que o financiamento ilícito é um problema global. Mas quando os EUA o invocam para pressionar a China a cortar laços com a Rússia — especialmente no contexto de uma guerra que eles próprios alimentam com bilhões em armas —, a questão deixa de ser ética e passa a ser puramente geopolítica.
A China tem repetidamente afirmado sua neutralidade construtiva no conflito ucraniano, propondo planos de paz e evitando tomar partido em uma guerra que não é sua. Já os EUA, responsáveis por grande parte da escalada militar no Leste Europeu, agora tentam transformar Pequim em policial de suas sanções unilaterais. A ameaça de sancionar bancos chineses que operem em dólares é uma forma de extorsão financeira, baseada no monopólio do dólar — um monopólio que, aliás, está sendo cada vez mais questionado por países do Sul Global.
A necessidade de um novo equilíbrio multipolar
O encontro em Madri, por mais que tenha evitado confrontos abertos, não resolveu as contradições de fundo. Enquanto os EUA insistirem em tratar a China como uma ameaça a ser contida, e não como um parceiro soberano em um mundo multipolar, nenhum acordo comercial será duradouro. A verdadeira segurança econômica não vem do controle coercitivo, mas da cooperação baseada no respeito mútuo.
A China, por sua vez, demonstra maturidade diplomática ao manter canais de diálogo abertos, mesmo diante de provocações constantes. Sua postura não é de confronto, mas de defesa intransigente de seus direitos nacionais — um exemplo que deveria inspirar outras nações que buscam escapar da lógica de subordinação imposta pelo Ocidente.
Em um mundo marcado por crises climáticas, desigualdades brutais e guerras por procuração, a humanidade não pode mais permitir que um único país decida o que é “seguro”, “ético” ou “comercialmente aceitável”. A soberania chinesa não é uma ameaça — é uma esperança. A esperança de que outro mundo é possível: um mundo onde as nações dialogam como iguais, onde a tecnologia serve aos povos e não aos lucros de corporações, e onde a paz não é negociada sob ameaça de sanções, mas construída com justiça.
Que Madri tenha sido apenas um passo — e não o destino. Porque o futuro não será escrito em Washington, mas coletivamente, por todos aqueles que ousam imaginar um mundo livre do jugo imperial.