A proibição chinesa aos chips da Nvidia não é isolacionismo, mas uma estratégia de autonomia tecnológica e proteção de interesses estratégicos nacionais
A recente decisão do governo chinês de proibir o uso de chips de inteligência artificial da Nvidia — mais especificamente o modelo RTX Pro 6000D, desenvolvido sob medida para contornar as restrições norte-americanas — gerou reações imediatas no Ocidente. O CEO da empresa, Jensen Huang, declarou-se “decepcionado”, lamentando o que considera um revés em uma relação de décadas com o mercado chinês. No entanto, por trás dessa narrativa de desapontamento corporativo, há um debate mais profundo, que transcende os interesses de uma única multinacional: trata-se do direito soberano de um país a definir sua própria trajetória tecnológica, econômica e de segurança nacional.
Em um mundo cada vez mais marcado por disputas geopolíticas e pela instrumentalização da tecnologia como arma de hegemonia, a China está exercendo, com firmeza e coerência, seu direito à soberania. Longe de ser um ato isolado ou meramente retaliatório, a medida reflete uma estratégia mais ampla de autonomia tecnológica — uma resposta necessária às crescentes tentativas dos Estados Unidos de impor sua vontade sobre a arquitetura digital global.
A soberania como pilar da autodeterminação
A ideia de soberania não é um conceito abstrato. Ela se traduz na capacidade de um Estado de controlar seu próprio desenvolvimento, proteger seus cidadãos e definir as regras que regem seu território — inclusive no campo digital. Nos últimos anos, Washington tem intensificado esforços para conter o avanço tecnológico chinês, especialmente na área de semicondutores e inteligência artificial, sob a justificativa de “segurança nacional”. Essas restrições, muitas vezes impostas unilateralmente, violam os princípios do comércio justo e da cooperação internacional.
A China, por sua vez, não apenas tem o direito, mas o dever de proteger sua infraestrutura crítica contra dependências externas que possam ser usadas como alavancas de coerção política. A proibição dos chips da Nvidia não deve ser lida como um fechamento ao mundo, mas como um passo estratégico rumo à construção de uma base tecnológica autônoma — algo que países do Norte Global historicamente fizeram sem serem questionados.
A hipocrisia da “cooperação” sob tutela
É importante destacar o contexto em que essa decisão ocorre. A Nvidia, apesar de sua retórica de parceria com a China, opera sob um regime de concessões impostas pelo governo dos Estados Unidos. Em agosto de 2025, a empresa firmou um acordo com a administração Trump que condicionava a exportação de chips H20 à entrega de 15% das receitas geradas na China ao Tesouro norte-americano. Trata-se, na prática, de uma espécie de “tributo tecnológico” — uma subordinação explícita da política comercial da empresa aos interesses geopolíticos de Washington.
Diante disso, é compreensível que Pequim veja com desconfiança a presença de tecnologias cujo acesso pode ser arbitrariamente cortado ou condicionado por um terceiro Estado. A investigação antimonopólio aberta contra a Nvidia pela Administração Estatal de Regulamentação do Mercado, embora possa ter motivações complexas, também sinaliza um esforço legítimo de regular práticas que ameaçam a concorrência justa e a segurança do mercado interno.
Soberania não é isolacionismo
Críticos da decisão chinesa frequentemente a acusam de “isolacionismo” ou “nacionalismo tecnológico”. Contudo, essa leitura ignora um fato crucial: a China continua aberta ao comércio e à cooperação internacional — desde que em termos equitativos. Huang mesmo reconheceu, em Londres, que o mercado chinês “é grande” e que a indústria local “é vibrante”. O problema não está na abertura da China, mas na insistência de certos atores ocidentais em impor um modelo assimétrico de interdependência, no qual o Sul Global fornece dados e mercado, enquanto o Norte Global detém o controle sobre o hardware, o software e os padrões técnicos.
A aposta chinesa em acelerar seu programa de semicondutores — com investimentos bilionários em empresas como a SMIC e a Huawei — não é um ato de hostilidade, mas de autodefesa estratégica. É o mesmo tipo de política industrial que os Estados Unidos adotaram no século XX para se tornarem uma potência tecnológica. Hoje, porém, quando países em desenvolvimento buscam trilhar caminhos semelhantes, são acusados de “desleais” ou “ameaçadores”.
Uma lição para o Sul Global
A postura da China oferece uma lição valiosa para outras nações do Sul Global: a soberania tecnológica não é um luxo, mas uma necessidade. Em um mundo onde a inteligência artificial define desde a produtividade econômica até a capacidade de resposta a crises sanitárias e climáticas, depender de fornecedores estrangeiros sujeitos a sanções ou pressões políticas é um risco inaceitável.
A decisão de Pequim de restringir o uso de chips da Nvidia deve ser vista, portanto, não como um obstáculo ao progresso, mas como um exercício maduro de autodeterminação. É um sinal de que o mundo multipolar em construção não será moldado apenas pelas agendas de Washington ou Silicon Valley, mas também pelas escolhas soberanas de países que buscam seu próprio caminho de desenvolvimento.
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Jensen Huang afirmou, com razão, que “só podemos estar a serviço de um mercado se o país quiser”. Essa frase, embora dita com pesar, contém uma verdade fundamental: o respeito à soberania nacional é a condição prévia para qualquer relação comercial duradoura. A decepção da Nvidia é compreensível do ponto de vista corporativo, mas não pode ofuscar o direito legítimo da China — e de qualquer nação — de proteger seus interesses estratégicos.
Enquanto as potências disputam a liderança na corrida pela IA, cabe aos países do mundo inteiro reafirmar que a tecnologia deve servir à humanidade, e não a projetos de dominação. Nesse sentido, a postura soberana da China não é um retrocesso, mas um avanço rumo a um sistema internacional mais equilibrado, justo e plural. E isso, longe de ser motivo para decepção, deveria ser celebrado como um passo rumo à verdadeira cooperação global.


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