Lula antecipou que vetará o projeto se for aprovado, mas parlamentares ainda podem derrubar a decisão presidencial
Na noite desta quarta-feira (17), a Câmara dos Deputados aprovou, por maioria, o regime de urgência para um projeto de anistia que promete acirrar ainda mais os debates em Brasília. A proposta é de autoria do deputado federal Marcelo Crivella (Republicanos-RJ) e foi apresentada em 2023.
O texto original prevê anistia para “participantes das manifestações reivindicatórias de motivação política ocorridas entre o dia 30 de outubro de 2022 e o dia de entrada em vigor” da eventual lei. Na prática, isso incluiria pessoas investigadas e condenadas por envolvimento nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas em Brasília.
A urgência foi aprovada com 311 votos favoráveis, 163 contrários e 7 abstenções. Agora, o projeto poderá ser votado diretamente em plenário, sem passar pelas comissões temáticas. A data da análise definitiva, no entanto, ainda não foi marcada.
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O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), vinha sendo cobrado por diferentes setores para pautar o tema. Nesta quarta, o relator do projeto, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), justificou a decisão afirmando que o país precisa de serenidade: “O Brasil precisa de pacificação e de um futuro construído em bases de diálogo e respeito. Temos na Casa visões distintas e interesses divergentes sobre os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023. Cabe ao Plenário, soberano, decidir”, escreveu em suas redes sociais.
Apesar da movimentação no Congresso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já adiantou que não pretende sancionar a proposta. Em entrevista exclusiva à BBC, ele afirmou que vetaria um eventual projeto de anistia: “Se viesse pra eu vetar, pode ficar certo de que eu vetaria. Pode ficar certo que eu vetaria”, declarou. Em seguida, Lula buscou se afastar do tema, lembrando que a decisão caberá primeiro aos parlamentares.
O texto apresentado por Crivella, ex-prefeito do Rio de Janeiro, vai além da participação direta nos atos de rua. Ele abrange também pessoas que tenham feito doações, prestado apoio logístico, oferecido serviços ou até divulgado conteúdos em redes sociais relacionados às manifestações de caráter “político e/ou eleitoral”. Por esse motivo, a proposta foi apelidada de “anistia light”, já que não contempla todos os pedidos mais amplos feitos por parte da oposição.
A iniciativa recebeu apoio de parlamentares próximos ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Entre eles, o líder do PL na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que defende a anistia como parte do processo de pacificação nacional.
O próximo passo será a definição de uma data para votação do mérito. Caso aprovado, o projeto seguirá para análise presidencial, onde poderá ser sancionado ou vetado. Ainda assim, o Congresso tem poder de derrubar um eventual veto do Executivo.
Enquanto isso, o clima político segue dividido. De um lado, defensores da anistia alegam que o perdão seria um gesto de reconciliação nacional. Do outro, críticos afirmam que a medida poderia abrir brechas para a impunidade de crimes graves cometidos contra a democracia.
Esse modelo de “anistia light” que começou a tramitar na Câmara pode não alcançar o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro. Na semana passada, ele foi condenado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) a mais de 27 anos de prisão por crimes relacionados a tentativa de golpe de Estado, entre outras acusações. Além disso, aliados próximos de Bolsonaro também foram punidos, e a proposta de Marcelo Crivella, em sua versão inicial, não abrangeria esses casos.
Outro ponto que coloca pressão no debate é a situação eleitoral do ex-presidente. Hoje, Bolsonaro já está inelegível até 2030, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Dependendo do desfecho do julgamento criminal no STF, esse prazo pode se estender por mais três décadas, levando a inelegibilidade até 2060, caso os recursos da defesa sejam rejeitados em definitivo.
A possibilidade de perdoar Bolsonaro divide o país. Uma pesquisa Datafolha divulgada no dia 13 mostrou que 54% dos brasileiros rejeitam a ideia de conceder anistia ao ex-presidente. Outros 39% apoiam a medida, revelando uma polarização intensa na sociedade.
O tema também se tornou bandeira em atos bolsonaristas. Frequentemente, manifestantes pedem anistia para o ex-presidente e seus apoiadores, discurso que ganhou força com o apoio de figuras de peso, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos). Possível candidato ao Planalto em 2026, Tarcísio já afirmou publicamente que, se eleito, a anistia a Bolsonaro seria seu “primeiro ato” no cargo.
No Congresso, lideranças como Hugo Motta (Republicanos-PB) e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), têm sinalizado preferência por uma proposta mais restrita de anistia, justamente para tentar reduzir resistências e viabilizar um acordo político.
Mesmo que avance no Legislativo e supere um possível veto do presidente Lula, a medida ainda enfrentaria um obstáculo robusto no Supremo Tribunal Federal. Nos bastidores, a avaliação é que a maioria dos ministros derrubaria a lei caso ela chegasse a entrar em vigor.
Ao menos seis integrantes da Corte já se posicionaram publicamente contra qualquer perdão a crimes cometidos contra a democracia: Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. Entre eles, apenas Fux tem demonstrado certa mudança de postura em relação aos julgamentos do 8 de janeiro. No caso de Bolsonaro, foi o único a votar pela absolvição na Primeira Turma.
Enquanto o texto de Crivella aguarda a designação de relator e deve sofrer mudanças a partir desta quinta-feira, o país acompanha um debate que não é apenas jurídico, mas também político e simbólico. No centro dessa discussão estão as feridas abertas pelos ataques à democracia e a difícil tarefa de definir os limites entre perdão, pacificação e justiça.
Posição do governo Lula
Nas últimas semanas, enquanto o Supremo julgava Jair Bolsonaro, o governo federal intensificou a liberação de emendas parlamentares — recursos que deputados e senadores destinam a suas bases eleitorais e que são considerados uma moeda política importante no Congresso. Segundo dados oficiais, mais de R$ 3 bilhões foram liberados apenas no período do julgamento, o que levantou críticas da oposição.
A deputada Bia Kicis (PL-DF), uma das principais vozes bolsonaristas na Câmara, acusou o Planalto de usar o dinheiro público para tentar barrar a anistia. Em publicação na rede X, no último dia 13, ela escreveu: “O governo corrupto e perverso está lançando mão das emendas parlamentares para tentar comprar votos contra a anistia. Cobre seu deputado, cobre seu senador e descubra se ele tem preço ou valor”.
Do lado do governo, a estratégia é endurecer o discurso contra qualquer tipo de perdão. Durante evento no sábado (13), a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, foi enfática ao afirmar que a gestão Lula não aceitará negociar sobre esse ponto. “Não podemos de maneira nenhuma olhar ou piscar para a questão da anistia. Vamos ser firmes, vamos ter que enfrentar o Congresso nesta pauta”, disse, em declaração publicada pela Folha de S.Paulo.
Gleisi ainda acrescentou que conceder anistia a Bolsonaro e outros envolvidos no 8 de janeiro seria equivalente a dar “um presentinho para Donald Trump”. Apesar disso, a ministra deixou aberta a possibilidade de discutir alternativas mais brandas, como a redução de penas. “Se querem discutir redução de pena, é outra coisa. Cabe a dosimetria ao Supremo Tribunal Federal ou até ao Congresso avaliar e ter um projeto. Mas aí é redução de pena, não tem a ver com anistia, não tem a ver com perdão”, afirmou.
O caso Bolsonaro, porém, ultrapassou as fronteiras nacionais e tem gerado efeitos na política internacional. Nos Estados Unidos, o governo de Donald Trump — que também enfrenta acusações judiciais em seu país — tem reagido à condenação do ex-presidente brasileiro. Em julho, Trump anunciou tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, alegando que Bolsonaro estaria sendo vítima de uma “caça às bruxas” no Brasil.
Embora centenas de itens tenham sido posteriormente isentados da tarifa, setores estratégicos da economia brasileira continuam enfrentando barreiras comerciais impostas por Washington. A medida foi interpretada por diplomatas como uma retaliação política direta.
No mesmo mês, outro episódio reforçou a tensão. O ministro Alexandre de Moraes, relator no STF da ação penal que condenou Bolsonaro, foi alvo de sanção nos Estados Unidos por meio da Lei Magnitsky — legislação criada para punir estrangeiros acusados de violações graves de direitos humanos ou corrupção.
Esse imbróglio internacional adiciona uma nova camada ao já complexo debate sobre a anistia, colocando o governo Lula em uma posição delicada: ao mesmo tempo em que precisa conter a pressão política interna, o Planalto também se vê desafiado a lidar com repercussões diplomáticas em uma conjuntura global instável.