Investimentos bilionários testam força da economia britânica

A visita de Trump e a presença de líderes britânicos simbolizam um “bromance tecnológico” entre EUA e Reino Unido, com impacto direto no ecossistema de startups / Reprodução

O “romance tecnológico” EUA-Reino Unido: o que os investimentos bilionários significam para a economia britânica?


No histórico Camden Town Hall, bem em frente à movimentada estação St. Pancras, um cenário discreto, longe do esplendor do Castelo de Windsor, ofereceu talvez o vislumbre mais concreto das repercussões da visita de Estado do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao Reino Unido.

Diante do Primeiro-Ministro Sir Keir Starmer, de membros dos gabinetes britânico e americano e da elite tecnológica europeia, foi exibido um vídeo de alta qualidade que celebrou a longa tradição científica britânica. A produção destacou nomes como George Stephenson, Charles Babbage, Ada Lovelace, Alan Turing e Sir Demis Hassabis, além de dezenas de startups espalhadas pelo país, reforçando o papel do Reino Unido como um polo de inovação.

O vídeo parecia um mix entre uma campanha de promoção de investimentos do governo britânico e a cerimônia de abertura das Olimpíadas de 2012, dirigida por Danny Boyle. A diferença crucial? A narração foi feita por Jensen Huang, CEO da Nvidia, gigante americana de inteligência artificial e microchips, cuja empresa alcançou valor de mercado de US$ 4 trilhões (£ 2,9 trilhões) neste verão.

Nvidia aposta alto no Reino Unido

Durante o evento, Huang destacou a extensa lista de empreendedores britânicos nos quais a Nvidia adquiriu participação e investiu, somando mais £ 2 bilhões em novos investimentos. Ele convidou ao palco Peter Kyle, Secretário de Negócios do Reino Unido, e o empresário americano Howard Lutnick, conhecido por seu papel na guerra comercial global. Lutnick declarou:

“Somos a América em primeiro lugar, mas não somos apenas a América… Queremos vencer, queremos que vocês vençam.”

O discurso simbolizou um empenho conjunto de empresas do Vale do Silício em fortalecer laços econômicos transatlânticos, oferecendo uma amostra da variedade de tecnologias e startups que estão sendo atraídas para investimentos bilionários no Reino Unido.

O “bromance tecnológico”

A semana marcou o que a imprensa já apelidou de “bromance tecnológico” entre Estados Unidos e Reino Unido. Além da Nvidia, gigantes como Microsoft e Google anunciaram aportes multibilionários no país, reforçando a estratégia do governo britânico de atrair investimentos em tecnologia para impulsionar a economia local e modernizar setores estratégicos a longo prazo.

Para o governo britânico, a iniciativa representa uma vitória inicial: o país está conseguindo posicionar-se como destino de investimentos de alta tecnologia, fortalecendo a narrativa de que a Grã-Bretanha pode se tornar um polo global de inovação e inteligência artificial.

Mas há desafios à frente

No entanto, analistas econômicos e especialistas em política industrial alertam que investimentos bilionários, por mais impressionantes que sejam, não garantem automaticamente a transformação da economia britânica. Ainda que esses aportes possam gerar empregos qualificados, estimular startups e reforçar o ecossistema de inovação, eles não são suficientes para mudar padrões de vida, reduzir desigualdades ou reverter percepções negativas sobre crescimento econômico e estabilidade política.

A questão central é se esses projetos tecnológicos conseguirão criar efeitos multiplicadores duradouros, levando a uma modernização sustentável da economia ou se permanecerão, em grande parte, como vitrines de alto impacto midiático e oportunidades de negócios transatlânticos.

O “romance tecnológico” entre EUA e Reino Unido é, portanto, mais do que uma série de anúncios de investimento: é um teste sobre como parcerias globais podem influenciar a economia de um país, especialmente em setores de ponta como inteligência artificial, semicondutores e tecnologia digital. Resta ver se essa estratégia se traduzirá em mudanças estruturais reais ou se será apenas mais um capítulo de grande visibilidade em um romance de curto prazo.

Apesar do entusiasmo dos gigantes de tecnologia dos Estados Unidos, o clima no Reino Unido continua marcado por certo pessimismo e ceticismo em relação à capacidade do país de transformar esses aportes em ganhos econômicos sustentáveis.

O próprio Jensen Huang, CEO da Nvidia, expressou surpresa com a autopercepção britânica:

“Esta é a semana em que declaro que o Reino Unido será uma superpotência em IA”, disse Huang, elogiando o primeiro-ministro Sir Keir Starmer e o Secretário de Negócios Peter Kyle.
“Vocês [britânicos] simplesmente não dão valor a isso. Qual é? Vocês são muito humildes”, acrescentou, lembrando a rica tradição britânica em pesquisa e inovação tecnológica.

Microsoft e Google reforçam aposta no Reino Unido

A Microsoft anunciou um investimento de £ 22 bilhões, ampliando seu plano Stargate AI, voltado para expandir a infraestrutura de IA nos próximos quatro anos. O CEO Satya Nadella descreveu a iniciativa como um passo para tornar a inteligência artificial uma tecnologia de uso geral, comparável à eletricidade ou à internet, já onipresente no cotidiano.

O Google, por sua vez, inaugurou um novo centro de dados em Essex, com a presença da chanceler Rachel Reeves e da presidente global Ruth Porat. A empresa investirá £ 5 bilhões em infraestrutura e na DeepMind, liderada pelo vencedor do Prêmio Nobel Sir Demis Hassabis. Porat destacou a “profunda oportunidade” do Reino Unido, mas alertou que ainda há “trabalho a ser feito” para consolidar o ecossistema tecnológico.

Críticas internas: “migalhas do Vale do Silício”

Apesar do otimismo, houve críticas contundentes. O ex-vice-primeiro-ministro e executivo sênior do Facebook, Sir Nick Clegg, afirmou que o Reino Unido estava “se agarrando às saias do Tio Sam” e recebendo apenas “migalhas da mesa do Vale do Silício”. Segundo ele, o país importa tecnologia e exporta talento e ideias, sem garantir que esses investimentos se traduzam em benefícios econômicos duradouros.

Ainda que o Tech Prosperity Deal assinado esta semana não tenha incluído contrapartidas explícitas como impostos digitais ou alterações na legislação de segurança online, o alinhamento britânico com a abordagem americana em IA é evidente. Howard Lutnick, executivo americano presente, enfatizou que a prioridade é avançar na tecnologia, abandonando restrições de segurança de IA estabelecidas na era Biden — uma postura seguida pelo governo do Reino Unido em algumas iniciativas.

O impacto de DeepMind e Arm Holdings

O Triângulo Dourado científico de Oxford-Cambridge-Londres tem sido o principal beneficiário da “poeira estelar do Vale do Silício”, segundo Kyle. Empresas como a DeepMind exemplificam tanto os riscos quanto as oportunidades: adquirida pelo Google por £ 400 milhões em 2014, a companhia contribuiu significativamente para a liderança britânica em pesquisa de ponta, mas também ilustra a exportação de tecnologia e capital intelectual para gigantes estrangeiros.

Outro exemplo é a Arm Holdings, cuja tecnologia está presente na maioria dos smartphones do mundo, incluindo iPhones. A empresa pode vir a fabricar chips próprios, em resposta à busca ocidental por segurança nas cadeias de suprimentos. Vale lembrar que Huang chegou perto de adquirir a Arm em 2022, mas o acordo foi bloqueado por autoridades regulatórias britânicas com base em preocupações antitruste. Sobre isso, Huang suspirou:

“Nem me lembre… Eu tentei”.

Entre entusiasmo e cautela

O panorama desta semana deixa claro que, embora os investimentos bilionários da Nvidia, Microsoft e Google tragam visibilidade e recursos importantes para o Reino Unido, o desafio agora é transformar esses aportes em benefícios tangíveis para a economia, a inovação doméstica e a retenção de talentos locais.

Enquanto o país se posiciona como polo de IA e tecnologia de ponta, permanece a pergunta: será que a Grã-Bretanha conseguirá aproveitar essa onda de investimentos para se afirmar como superpotência tecnológica, ou continuará apenas como plataforma para expansão de empresas estrangeiras?

A resposta dependerá não apenas do capital que entra, mas da capacidade britânica de criar infraestrutura, políticas e talentos que realmente consolidem a inovação em território nacional. O romance tecnológico entre Estados Unidos e Reino Unido promete moldar o futuro da economia, mas os riscos e desafios permanecem tão visíveis quanto as oportunidades.

Apesar do trabalho fundamental realizado nos últimos anos pelo governo anterior, sob Rishi Sunak e Jeremy Hunt, ficou evidente que algumas empresas se sentiram desvalorizadas pelo tratamento recebido e só se engajaram plenamente quando Peter Kyle apareceu de camiseta no Vale do Silício no ano passado, em gesto informal que reforçou a aproximação com os investidores.

Esse episódio ilustra as possíveis consequências do romance entre o Reino Unido e a tecnologia americana. Ele ajuda a explicar a orientação “pró-crescimento” adotada por alguns reguladores britânicos, incluindo a demissão do presidente da CMA em janeiro, que sinalizou um ambiente mais receptivo a investimentos estrangeiros de grande escala.

A enxurrada de capital norte-americano encontrou no Reino Unido um lar mais seguro do que em qualquer outro país europeu, oferecendo à economia britânica a chance de se tornar um laboratório de tecnologia global. No entanto, há o risco de que os benefícios se concentrem principalmente nas gigantes americanas, enquanto o Reino Unido forneceria infraestrutura, talento e pesquisa. A visita de Estado de Trump reforçou esse alinhamento estratégico, evidenciando uma postura conjunta de cooperação tecnológica em uma disputa de longo prazo com a China no setor de IA.

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Huang ressaltou que não se trata de um “jogo de soma zero”:

“O presidente Trump quer vencer, assim como o presidente Xi. É possível que ambos consigam.”

Essa frase resume a ambição do Reino Unido de atrair investimentos significativos que impulsionem o crescimento econômico, mesmo que os desafios fiscais imediatos e questões como o déficit público permaneçam pendentes.

Especialistas alertam que, embora os investimentos em IA e tecnologia tragam visibilidade e recursos valiosos, os benefícios não são automáticos. Experiências em lugares como São Francisco mostram que booms tecnológicos frequentemente deixam parte da população para trás. A implementação ampla da IA já está impactando setores como contabilidade, assistentes administrativos, assessoria jurídica júnior e profissões criativas, o que sugere que a transição tecnológica terá custos sociais e econômicos visíveis antes de gerar uma expansão generalizada de empregos.

Mesmo assim, o impacto mais imediato pode ser uma injeção de otimismo no Reino Unido, ao posicionar o país como um centro global de inovação em IA. A nação está agora totalmente focada nessa tecnologia, tornando-se progressivamente dependente da expertise americana, enquanto os gigantes do Vale do Silício necessitam do conhecimento britânico.

O resultado dessa parceria — ainda que permeado de riscos e desafios — pode definir a economia britânica e o papel do país no mundo nas próximas décadas, transformando o Reino Unido em um ator estratégico na corrida global pela inteligência artificial e pela tecnologia de ponta.

Com informações de BBC*

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