Investimentos de Nvidia, Microsoft e Google reforçam Londres como polo tecnológico, sem contrapartidas para direitos sociais ou soberania digital
Em pleno coração de Londres, diante do histórico Camden Town Hall, desenrolou-se na semana passada um espetáculo que mais parecia um ato de diplomacia corporativa do que um compromisso com o futuro coletivo da sociedade britânica. A visita de Estado do presidente norte-americano Donald Trump ao Reino Unido foi marcada não por acordos voltados à justiça social, proteção ambiental ou redução das desigualdades, mas por um alinhamento tecnológico e econômico com as maiores corporações do Vale do Silício — Nvidia, Microsoft e Google — cujos interesses raramente coincidem com os da população comum.
O vídeo exibido no evento, narrado pelo bilionário CEO da Nvidia, Jensen Huang, celebrava a tradição científica britânica com pompa cinematográfica. Nomes como Alan Turing e Ada Lovelace foram evocados como símbolos de uma herança intelectual que, ironicamente, hoje serve de isca para atrair investimentos estrangeiros. A narrativa construída — de que o Reino Unido está prestes a se tornar uma “superpotência em inteligência artificial” — soa mais como uma campanha de relações públicas do que como um plano concreto de desenvolvimento inclusivo.
É verdade que os anúncios são impressionantes em escala: £22 bilhões da Microsoft, £5 bilhões do Google, £2 bilhões da Nvidia. Mas números altos não equivalem, por si só, a progresso social. Ao contrário: quando esses investimentos vêm sem contrapartidas claras em termos de soberania tecnológica, distribuição de renda, criação de empregos de qualidade ou proteção dos direitos trabalhistas, corremos o risco de transformar o país em uma simples plataforma de expansão para corporações globais — e não em um polo autônomo de inovação.
A própria crítica feita por Sir Nick Clegg — de que o Reino Unido está “se agarrando às saias do Tio Sam” e recebendo apenas “migalhas da mesa do Vale do Silício” — toca em um ponto essencial. O país exporta talento, ideias e pesquisa de ponta, mas raramente retém os frutos econômicos dessas contribuições. DeepMind, adquirida pelo Google em 2014, é um exemplo emblemático: uma empresa britânica de vanguarda, cujos avanços agora alimentam os lucros de uma gigante norte-americana. O mesmo padrão se repete com a Arm Holdings, cuja tecnologia está em bilhões de dispositivos, mas cujo controle estratégico permanece vulnerável a interesses externos.
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Há, ainda, uma contradição profunda na postura do governo britânico. Enquanto se orgulha de atrair investimentos bilionários, abandona cautelas regulatórias que poderiam proteger o interesse público. A demissão do presidente da Autoridade de Mercados e Concorrência (CMA), por exemplo, sinaliza uma guinada deliberada em direção a um ambiente mais permissivo para grandes corporações — muitas delas responsáveis por práticas anticompetitivas, evasão fiscal e precarização do trabalho. Esse “pró-crescimento” tão celebrado parece, na prática, ser “pró-lucro corporativo”.
Além disso, a promessa de que a inteligência artificial será “tão onipresente quanto a eletricidade” ignora os custos humanos dessa transição. Já vemos os primeiros sinais: profissionais de contabilidade, assistentes administrativos, advogados juniores e trabalhadores criativos enfrentam a ameaça iminente de substituição por algoritmos. Sem políticas robustas de reconversão profissional, proteção social e redistribuição da riqueza gerada pela automação, a revolução tecnológica não será libertadora — será excludente.
É legítimo questionar: quem realmente se beneficia com esse “bromance tecnológico”? Certamente não são os trabalhadores de fábricas fechadas no norte da Inglaterra, nem os jovens que enfrentam precariedade no mercado de trabalho, nem as comunidades que veem seus serviços públicos esvaziados enquanto bilhões fluem para data centers e laboratórios de IA. O entusiasmo de executivos como Huang e Nadella contrasta com o ceticismo crescente da população britânica, que percebe que, mais uma vez, as elites econômicas e políticas estão negociando o futuro do país sem consultar quem nele vive.
O alinhamento estratégico com os EUA também carrega uma dimensão geopolítica preocupante. Ao posicionar-se como parceiro-chave na corrida tecnológica contra a China, o Reino Unido arrisca-se a se tornar um mero satélite da agenda de segurança nacional norte-americana, sacrificando sua autonomia em nome de uma suposta “cooperação”. A frase de Huang — “o presidente Trump quer vencer, assim como o presidente Xi. É possível que ambos consigam” — soa ingênua diante da realidade de uma disputa que já divide o mundo em blocos tecnológicos rivais, com consequências profundas para a soberania digital e os direitos humanos.
Não se trata de rejeitar a inovação. Pelo contrário: a tecnologia pode — e deve — ser uma ferramenta de emancipação, desde que submetida ao controle democrático e orientada por valores de justiça, equidade e sustentabilidade. Mas o modelo atual, centrado em parcerias com corporações cujos lucros são priorizados sobre as necessidades sociais, dificilmente levará a esse caminho.
O Reino Unido tem, sim, um legado científico brilhante e um potencial real para liderar na era da IA. Mas isso só será possível se o país decidir investir em sua própria capacidade produtiva, fortalecer seu sistema educacional, proteger seus pesquisadores e, acima de tudo, colocar as pessoas no centro da transformação tecnológica — e não como meros dados de treinamento ou força de trabalho descartável.
Enquanto o “romance tecnológico” entre Washington e Londres for celebrado como um fim em si mesmo, sem questionar quem ganha, quem perde e a que custo, estaremos trocando soberania por ilusões de grandeza. E, nesse tipo de casamento, o povo britânico corre o risco de sair mais uma vez como convidado invisível — ou, pior ainda, como o verdadeiro custo da festa.