Por Rollo — narrando a saga com a precisão
de quem sabe que a verdade incomoda mais que derrota em eleição.(*)
Existem os mitos verdadeiros — forjados no fogo da vida, na fome e na luta — e existem os autoproclamados mitos, que não passam de mitômanos, criaturas infladas de bravata que desmoronam na primeira ventania. Um nasceu em Caetés, sobreviveu ao sertão, perdeu um dedo na fábrica e ainda voltou três vezes para humilhar os deuses da elite; o outro… bem, o outro preferiu passear de jet-ski enquanto o país afundava na miséria, no desmatamento e na pandemia. Esqueça Jedi, Frodo e Harry Potter: o verdadeiro Herói de Mil Faces está aqui, e sua biografia faz Hollywood parecer novelinha da Disney. Segue a Jornada.
As origens da jornada do herói
Tudo começa na mitologia, onde a ousadia sempre custou caro. Prometeu, aquele titã teimoso que resolveu roubar o fogo dos deuses para entregá-lo aos mortais, acabou acorrentado numa pedra, condenado a ter o fígado bicado diariamente por uma águia. Moral da tragédia: quem ousa dar poder ao povo, apanha dos donos do Olimpo.
Séculos depois, o americano Joseph Campbell fez o trabalho de juntar esses fios espalhados em mitos, epopeias e religiões. Em O Herói de Mil Faces (1949), ele mostrou que, em qualquer canto do planeta, toda história de herói segue o mesmo mapa: começa na normalidade, é arrancado para a aventura, enfrenta monstros, desce ao Inferno, renasce e volta transformado, trazendo algo de valor ao seu povo. Campbell chamou isso de Monomito — a narrativa universal da resistência humana.
Hollywood, claro, adorou. Christopher Vogler, roteirista e consultor de estúdio, simplificou Campbell em 12 passos de manual, fáceis de aplicar em blockbusters. O resultado? Star Wars, O Senhor dos Anéis, Harry Potter, O Rei Leão… tudo segue a mesma fórmula.
Mas aí vem a ironia que deixa a elite brasileira engasgada até hoje: o melhor exemplo do Herói de Mil Faces não nasceu em Hollywood, nem no Olimpo, nem na Terra-Média. Nasceu em Caetés, no sertão de Pernambuco. Enquanto Lucas inventava jedis de sabre de luz, a vida real produzia um operário esfomeado, com dedo a menos e coragem de sobra. Nome e sobrenome: Luís Inácio Lula da Silva.
Os 12 passos da jornada de Lula

1. Mundo Comum: sertão seco, fome, caminhão pau-de-arara. O início não foi com capa vermelha, mas com barriga vazia e pés rachados.
2. Chamado à Aventura: no ABC paulista, entre graxa e salário de miséria, surge o chamado: ou você se cala, ou você organiza greve. Lula não nasceu para calar.
3. Recusa do Chamado: no começo, até recusou a política. Queria apenas trabalhar. Comprar uma casinha e ter uma família. Mas a fábrica engoliu-lhe um dedo. O destino não perguntou: ordenou.
4. Encontro com o Mentor: dona Lindu, a mãe que deu aula de dignidade sem precisar de diploma da Sorbonne. Enquanto a elite cria herdeiros mimados a mesada em dólar, Lula cresceu com lições de caráter. Frei Chico, seu irmão, também mostrou que a luta é mais pedagógica que qualquer MBA.
5. Travessia do Primeiro Limiar: no Sindicato dos Metalúrgicos foi de operário anônimo a líder que fazia generais tremerem mais do que banqueiro em dia de greve.
6. Provas, Aliados e Inimigos: as provas foram as greves históricas. Os aliados eram os operários, artistas, padres progressistas. E os inimigos? Os patrões, ditadura e aquela elite que nunca engoliu ver um torneiro mecânico de terno.
7. Aproximação da Caverna Oculta: a fundação do PT, com direito a bandeira do partido costurada por sua esposa de sangue italiano: Marisa Letícia. Enquanto a elite montava partidos de aluguel, Lula e seus pares criavam um projeto que incomoda até hoje.
8. Provação Suprema: três derrotas eleitorais: 1989, 1994, 1998. Taxado de “incapaz”, tratado como piada de rodapé. O herói sangra, tropeça, mas não desiste.
9. Recompensa: 2002. O torneiro mecânico vence. O Brasil vira sujeito da própria história. Bolsa Família, universidades abertas, empregos formais. O fogo roubado dos deuses, finalmente entregue ao povo.
10. Caminho de Volta: Sai em 2010 como um dos presidentes mais populares do mundo. Mas os falsos deuses não descansam: decidem que o Prometeu nordestino precisa voltar às correntes.
11. Ressurreição: a elite brindou com champanhe enquanto Lula estava na prisão em Curitiba. Mas enquanto eles achavam que enterravam o herói, o povo via nascer o mártir. Ele ressurgiu mais forte, com a Justiça e a História ao seu lado.
12. Retorno com o Elixir: 2022. Lula volta eleito, com 60 milhões de votos. O elixir? Democracia, dignidade e esperança para um país devastado pelo fascismo de quinta categoria.
O Olimpo treme
A vida de Lula é a Jornada do Herói escrita em carne e osso. Campbell teorizou, Vogler resumiu, Hollywood plastificou. O Brasil, no entanto, produziu o herói real — aquele que a elite queria ver como nota de rodapé, mas que insiste em ser título de capítulo.
E o que mais enfurece seus opositores é simples: em 1989, por exemplo, pintaram Lula como se fosse o capeta em pessoa — barba preta, chifres, rabo e tudo. Juntaram ainda a fofoca do apocalipse (na época nem se falava em fake news): “se ele ganhar, vai dividir o seu quintal com a reforma agrária e meter um sem-teto na sua sala de jantar”. Queriam que ele fosse o vilão de novela trash, mas a vida deu a rasteira: o suposto demônio atravessou cada provação e terminou fazendo o papel do herói. Queriam-no acorrentado como Prometeu, mas ele sempre retorna trazendo fogo ao povo. Queriam o final trágico, receberam um renascimento democrático. E não parou aí: ele continua os passos, a sua jornada: peitou Donald Trump na taxação, não se dobrou à pressão do presidente dos EUA — que ainda por cima se deixou envenenar pela conversa fiada do traidor Eduardo Bananinha, nosso Joaquim Silvério dos Reis em versão 5G. E, durante essa semana, encantou quem esteve na Assembleia Geral da ONU. A começar pelo próprio Trump, hipnotizado na frente de um monitor assistindo Lula discursar na abertura do encontro.
Moral da epopeia? Enquanto uns idolatram falsos deuses engravatados, mitos de araque e herdeiros de cartório, Lula encarna o herói improvável: o homem comum que vira extraordinário, o eterno retorno que não se cala. Cada vez que tentam enterrá-lo, ele volta mais forte — e, para desespero dos que se acham donos do Olimpo, traz sempre um elixir chamado democracia.
Hollywood que me perdoe, mas o verdadeiro roteiro épico não está nas telas. Está na biografia de um torneiro mecânico nordestino chamado Lula.

(*) Rollo é ator profissional e ex-integrante do Conselho Estadual de Política Cultural do RJ na cadeira do Audiovisual. Atualmente, integra o elenco do espetáculo teatral “O Bem Amado”, de Dias Gomes, ao lado de Diogo Vilela, com direção de Marcus Alvisi.


Jô Costta
28/09/2025 - 11h10
Excelente texto.