A recusa dos EUA em aceitar supervisão internacional sobre a IA revela um projeto de poder digital marcado por isolamento e hegemonia
Na semana em que líderes mundiais se reuniram em Nova York para a Assembleia Geral das Nações Unidas, um tema emergiu com força inédita na agenda diplomática global: a governança da inteligência artificial (IA). Diante dos riscos crescentes — desde ameaças à segurança internacional até impactos profundos no emprego, na democracia e nos direitos humanos —, a comunidade internacional demonstrou ampla disposição para construir um quadro multilateral de cooperação. Mas, em meio a esse consenso emergente, os Estados Unidos escolheram um caminho solitário: rejeitar qualquer forma de supervisão internacional sobre o desenvolvimento e uso da IA.
A posição norte-americana, expressa com firmeza por Michael Kratsios, então diretor do Escritório de Política Científica e Tecnológica, foi clara: “Rejeitamos totalmente todos os esforços de órgãos internacionais para afirmar o controle centralizado e a governança global da IA”. A justificativa? A defesa da “soberania nacional” e da “independência” frente ao que Washington classifica como “gestão burocrática”. Por trás dessa retórica, no entanto, esconde-se uma lógica mais incômoda: a preservação de um modelo tecnológico que beneficia poucos, sob o pretexto de proteger a inovação.
É irônico — e preocupante — que o país que mais influencia o desenvolvimento global da IA, abrigando gigantes como Google, Microsoft, Meta e OpenAI, seja também o mais resistente a submeter suas decisões a qualquer tipo de escrutínio coletivo. Enquanto o secretário-geral da ONU, António Guterres, lança o Diálogo Global sobre Governança da IA como resposta urgente a uma tecnologia que “evolui mais rápido do que qualquer outra na história da humanidade”, os EUA insistem em tratar a IA como um domínio exclusivo de sua soberania, como se seus algoritmos não tivessem consequências transnacionais.
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A ambiguidade de Trump e a ilusão do “sistema confiável”
O então presidente Donald Trump, em seu discurso na abertura da Assembleia Geral, tentou equilibrar liderança e isolamento. Disse que os EUA querem ser “pioneiros em um sistema de verificação de IA em que todos podem confiar”, especialmente no contexto da Convenção sobre Armas Biológicas. Reconheceu os riscos: “a IA pode ser perigosa”. Mas, ao mesmo tempo, deixou claro que qualquer papel da ONU deve ser “construtivo” — ou seja, subordinado aos interesses e valores norte-americanos.
Essa postura ambígua revela uma contradição fundamental: os EUA querem definir as regras globais da IA, mas sem permitir que outros países participem da definição dessas regras. Querem liderar, mas não cooperar. Querem estabelecer padrões de “confiança”, mas apenas os seus próprios.
O Departamento de Estado reforça essa visão ao afirmar que Washington apoia “nações com ideias semelhantes” — ou seja, aliados ideológicos e estratégicos — para moldar o futuro da IA. A mensagem é clara: cooperação, sim, mas apenas entre os que pensam como nós. Esse enfoque minilateral, embora possa gerar avanços técnicos em certos círculos, ignora a natureza profundamente global dos riscos da IA. Um algoritmo treinado em São Francisco pode gerar desinformação em Jacarta, automatizar demissões em São Paulo ou alimentar sistemas de vigilância em Pequim. Não há soberania digital que isole esses efeitos.
A resposta do mundo: multilateralismo como necessidade, não escolha
Enquanto os EUA recuam, o resto do mundo avança. A ONU lançou seu Diálogo Global sobre Governança da IA não como um mecanismo de imposição, mas como um fórum inclusivo de diálogo — algo que o próprio enviado especial da ONU para tecnologias digitais, Amandeep Singh Gill, enfatizou: “A regulamentação permanece onde pode ser feita: em jurisdições soberanas”. Trata-se, portanto, de coordenação, não de controle.
A China, apesar de suas próprias controvérsias em matéria de vigilância e censura, aproveitou a oportunidade para criticar o “unilateralismo” norte-americano e reafirmar seu apoio ao papel central da ONU. Já a União Europeia, por meio do primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez, foi ainda mais contundente: “Precisamos coordenar uma visão compartilhada da IA em nível global, tendo a ONU como fórum legítimo e inclusivo”. Para a Europa, que já avança com seu próprio regulamento de IA baseado em direitos humanos, o multilateralismo não é um ideal romântico, mas uma exigência prática diante de desafios que nenhum Estado pode enfrentar sozinho.
Essa divisão não é apenas técnica — é política. Reflete duas visões de mundo: uma que vê a tecnologia como bem comum global, sujeito a salvaguardas coletivas; outra que a trata como ativo estratégico, a ser protegido e projetado conforme interesses nacionais. A primeira busca equilíbrio entre inovação e proteção social. A segunda prioriza velocidade, competitividade e domínio.
Os riscos que não respeitam fronteiras
Especialistas alertam que, à medida que a IA se torna mais avançada, seus desafios se tornarão inevitavelmente transnacionais. Renan Araujo, do Instituto de Política e Estratégia de IA em Washington, reconhece que, embora coalizões bilaterais tenham seu valor, “os desafios relacionados à IA se tornarão mais transnacionais por natureza”. Isso significa que, mais cedo ou mais tarde, até os mais céticos terão de aceitar que certas decisões — sobre armas autônomas, deepfakes políticos, viés algorítmico ou concentração de poder em poucas corporações — exigem respostas coletivas.
O economista Daron Acemoglu, Prêmio Nobel, foi ainda mais enfático: “a IA é a maior ameaça que a humanidade já enfrentou”. Se essa avaliação for minimamente correta, então a recusa em construir mecanismos de governança global não é apenas imprudente — é irresponsável.
Um novo Pacto Digital, mas sem os EUA?
A ONU já deu passos concretos nessa direção. Em 2024, aprovou o Pacto Digital Global, que inclui a criação de um painel científico independente para avaliar riscos e cenários futuros da IA. O Diálogo Global lançado agora é a próxima etapa. Sua primeira reunião completa está marcada para 2026, em Genebra. Até lá, o mundo terá que decidir: avançará com ou sem os Estados Unidos?
A esperança é que Washington, mesmo que por pragmatismo, acabe reconhecendo que a soberania tecnológica não pode significar impunidade tecnológica. Que inovação e responsabilidade não são opostos, mas complementos. E que, em um mundo interconectado, nenhum país — por mais poderoso que seja — pode regular o futuro da humanidade sozinho.
Até lá, a postura dos EUA permanece como um sinal de alerta: quando o poder tecnológico se concentra sem contrapesos democráticos, o risco não é apenas de desigualdade, mas de desumanização. E isso, infelizmente, não pode ser resolvido com algoritmos — mas com política, cooperação e, acima de tudo, humildade.