Proposta de 20 pontos ignora a autodeterminação palestina e cria conselho internacional que ameaça substituir a soberania por tutela externa
Enquanto as bombas continuam a cair sobre Gaza, reduzindo bairros inteiros a escombros e ceifando vidas inocentes, os corredores do poder em Washington e Tel Aviv celebram o que chamam de “um dia histórico para a paz”. Mas para quem? Certamente não para os mais de dois milhões de palestinos encurralados em uma das maiores prisões a céu aberto do mundo, cuja terra, história e futuro são mais uma vez negociados sem sua plena representação, sem seu consentimento soberano e sob a sombra de um plano que, longe de promover justiça, consolida a dominação.
O chamado “plano de 20 pontos” anunciado conjuntamente por Donald Trump e Benjamin Netanyahu não é um roteiro para a paz, mas um novo capítulo na longa saga de intervenção externa, desrespeito ao direito internacional e negação da autodeterminação palestina. Sob o verniz diplomático de cessar-fogo e ajuda humanitária, esconde-se uma arquitetura política que busca desmontar a legitimidade do povo palestino como sujeito de direitos, substituindo sua soberania por uma governança tecnocrática supervisionada por figuras ocidentais — entre elas, o próprio Trump e Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico cujo legado no Iraque e no Oriente Médio é marcado por apoio a guerras ilegais e intervenções desastrosas.
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A proposta, embora tenha recebido o apoio de alguns países árabes e muçulmanos — talvez sob pressão ou na esperança de conter o derramamento de sangue imediato —, ignora deliberadamente o princípio central de qualquer solução justa: a soberania palestina.
Ao prever a criação de um “comitê palestino apolítico e tecnocrático”, o plano retira do povo palestino o direito de escolher seus próprios representantes, de reconstruir suas instituições e de decidir seu destino político. Trata-se de uma forma velada de tutela internacional, que lembra perigosamente os regimes coloniais do século passado, quando potências ocidentais decidiam o futuro de povos inteiros com base em interesses estratégicos, não em direitos humanos.
Pior ainda é o silêncio ensurdecedor sobre a “solução de dois Estados” — o único consenso internacional capaz de oferecer uma base mínima para coexistência pacífica. A ausência dessa expressão no documento não é acidental. É uma escolha política clara, alinhada com a postura de Netanyahu, que repetidamente afirmou que jamais permitirá a existência de um Estado palestino soberano.
Ao omitir esse pilar fundamental, o plano de Washington entrega, na prática, a causa palestina à lógica da rendição: desarmamento unilateral do Hamas, destruição de infraestrutura, supervisão externa e nenhuma garantia concreta de independência nacional.
Enquanto isso, a guerra não para. Pelo contrário: Israel acaba de aprovar um pacote adicional de quase US$ 10 bilhões para financiar suas operações militares, e suas forças aéreas seguem bombardeando Gaza com impunidade. Em apenas 24 horas, mais de 140 alvos foram atingidos, matando dezenas e ferindo centenas.
Essa não é a postura de um Estado que busca a paz, mas de um que busca a subjugação total. E os Estados Unidos, longe de exercerem pressão por moderação, reforçam seu apoio incondicional, chegando ao ponto de ameaçar, pela voz de Trump, que, se o Hamas rejeitar o plano, Israel terá respaldo para “terminar o trabalho de destruir a ameaça do Hamas” — como se a população civil de Gaza fosse um mero obstáculo tático a ser eliminado.
Essa lógica bélica, respaldada por uma diplomacia seletiva e unilateral, é profundamente perigosa. Ela não resolve conflitos; os perpetua. Ao negar ao povo palestino o direito de governar a si mesmo, ao ignorar as causas estruturais da resistência — a ocupação, o bloqueio, a expansão de assentamentos ilegais — e ao impor soluções de cima para baixo, o plano americano semeia as sementes de futuros ciclos de violência. A paz imposta não é paz; é armistício armado, temporário e frágil.
É urgente lembrar que a soberania não é um privilégio, mas um direito inalienável. Os palestinos não são um problema a ser gerenciado por conselhos internacionais liderados por ex-líderes ocidentais. São um povo com história, território, cultura e aspirações legítimas. A solução duradoura para Gaza — e para toda a Palestina — só será possível quando o direito à autodeterminação for respeitado plenamente, quando as resoluções da ONU forem implementadas, quando o bloqueio for levantado e quando o Estado palestino for reconhecido com as mesmas prerrogativas que qualquer nação soberana.
A comunidade internacional, especialmente os países do Sul Global, tem o dever moral e político de rejeitar planos que mascaram a dominação sob o disfarce da mediação. A verdadeira paz não nasce de acordos costurados em salas fechadas de Washington, mas do respeito mútuo, da justiça histórica e da restauração da dignidade de um povo que há décadas luta por seu lugar no mapa — não como um território administrado, mas como uma nação livre.
Enquanto Gaza arde em chamas e famílias enterrem seus mortos sob escombros, não podemos nos contentar com discursos vazios de “histórico” ou “marco”. Precisamos exigir soberania, não supervisão; autodeterminação, não tutela; e, acima de tudo, paz com justiça — não paz com submissão. A causa palestina é, antes de tudo, uma causa humana. E nenhuma diplomacia pode ser legítima se negar isso.