Netanyahu enfrenta pressão inédita enquanto aliados árabes ganham relevância estratégica na mediação do conflito israelense-palestino
Donald Trump surpreendeu a comunidade internacional na última semana ao apresentar uma proposta de paz para o conflito israelo-palestino que, paradoxalmente, pode ser considerada convencional. Durante seu discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente americano fez críticas ríspidas — chamando certas políticas de “tão patéticas e tão ruins” —, mas nos bastidores sua administração aproveitou o fórum para lançar um plano de 21 pontos que retoma conceitos tradicionais de resolução de conflitos na região.
O documento surpreende por trazer de volta a ideia de um Estado palestino como meta final do processo de paz, uma proposta que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu rejeitou veementemente. Além disso, o plano inclui medidas como um cessar-fogo permanente e a criação de uma força multinacional de estabilização em Gaza, composta por tropas de nações árabes e muçulmanas. Essa força teria o papel de ajudar na reconstrução do território e apoiar o autogoverno palestino, evitando a expulsão em massa de sua população, uma ideia presente em planos anteriores da extrema direita israelense.
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O novo plano de Trump se destaca também pelo que omite. Diferentemente da proposta anterior conhecida como “Riviera de Gaza”, que incluía a reconstrução financiada pelos EUA e que corria o risco de legitimar deslocamentos forçados de palestinos, o documento atual descarta explicitamente qualquer tipo de expulsão. A proposta também rejeita a anexação israelense da Cisjordânia ocupada, outro ponto central da agenda da direita radical em Israel.
Um cenário delicado para Netanyahu
Essas mudanças colocam Netanyahu em uma posição delicada. O primeiro-ministro e seu gabinete de extrema direita enfrentam agora a difícil tarefa de negociar sobre elementos que podem ser difíceis de aceitar, como o cessar-fogo e a presença de uma força multinacional em Gaza. O encontro agendado entre Trump e Netanyahu promete ser tenso, já que o plano americano limita algumas das ambições da extrema direita israelense.
O papel do Catar e de aliados árabes
O contexto que levou a esse momento é complexo. Um bombardeio israelense ao Catar, realizado na tentativa de atingir líderes do Hamas, acabou sendo um erro estratégico que enfureceu Doha, um país com forte influência sobre Washington. O Catar abriga uma grande base aérea americana e tem histórico de mediação em conversas com o Talibã e o Hamas. Além disso, mantém relações comerciais com o círculo próximo de Trump, incluindo a família de Steve Witkoff, enviado do presidente para o Oriente Médio.
O episódio gerou repercussão regional. Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, que haviam tido divergências com o Catar nos anos anteriores, declararam apoio aos catarianos após o ataque israelense. Esses Estados também têm influência considerável sobre Trump, sendo que suas primeiras visitas oficiais durante os dois mandatos do presidente foram justamente a Riad.
Mudança na dinâmica militar
Durante os governos de Trump e Biden, o governo Netanyahu se acostumou a agir militarmente de forma unilateral em países como Líbano, Síria e Irã, contando depois com o apoio retroativo da Casa Branca. No entanto, o episódio do Catar demonstra que essa estratégia pode ter perdido eficácia. A dependência de aliados regionais poderosos e a necessidade de conciliar interesses diplomáticos mais amplos agora colocam limites às ações militares de Israel, enquanto a Casa Branca busca recuperar influência política e estabilizar o conflito em Gaza.
Com o plano de 21 pontos, Trump parece estar reposicionando sua política no Oriente Médio: deixando de lado projetos controversos, aproximando-se do mainstream e, ao mesmo tempo, tentando equilibrar interesses de Israel, dos palestinos e de aliados árabes estratégicos. A proposta representa, para muitos analistas, um passo cauteloso, mas significativo, na tentativa de devolver alguma previsibilidade a uma região marcada por décadas de instabilidade e impasses diplomáticos.
Israel isolado internacionalmente
Nos últimos dias, a pressão sobre o governo de Benjamin Netanyahu se intensificou. Países europeus endureceram suas políticas em relação a Israel: tanto a França quanto o Reino Unido reconheceram oficialmente um Estado palestino. A reação americana foi contida. Embora Donald Trump tenha criticado os reconhecimentos na Assembleia Geral da ONU, sua linguagem foi moderada se comparada à de Mike Huckabee, embaixador dos EUA em Israel, que descreveu o gesto francês como “revoltante”.
O isolamento internacional de Israel se tornou palpável. O reconhecimento da Palestina por países europeus, assim como por Canadá e Austrália, gerou grande irritação em Jerusalém. A ameaça de uma anexação unilateral da Cisjordânia, outrora considerada possível, parece agora improvável diante da condenação global.
Pressão sobre Israel se intensifica
Outro fator de tensão foi a alegação de um painel da ONU de que Israel estaria cometendo genocídio em Gaza. A repercussão internacional começou a se refletir em ações culturais e esportivas: medidas para banir equipes israelenses de torneios europeus de futebol e até do Festival Eurovisão da Canção ganham força. Além disso, o acordo de comércio e cooperação da União Europeia com Israel está sendo revisado. Acadêmicos e empresas israelenses já manifestam receio de um boicote não declarado na Europa.
Nos Estados Unidos, a opinião pública também demonstra sinais de mudança, aumentando a percepção de que o apoio incondicional a Israel, especialmente a uma agenda de direita radical, pode não ser mais sustentável.
Um alerta para Israel
Apesar do impacto doloroso, analistas veem a pressão internacional como uma oportunidade de afastar o país da influência da extrema direita. A agenda dos extremistas — intensificação da guerra em Gaza, anexação da Cisjordânia, expulsão dos palestinos e enfraquecimento da democracia interna — é considerada perigosa não apenas para os palestinos, mas para a própria segurança e estabilidade de Israel.
Netanyahu chegou a sugerir que seu país deveria aceitar certo grau de isolamento e se transformar em uma “super Esparta”, numa alusão à necessidade de autossuficiência militar. Especialistas, no entanto, apontam que a analogia mais precisa seria com a África do Sul do período do apartheid: isolada internacionalmente e sujeita a boicotes econômicos e culturais.
Trump retira apoio incondicional
Um ponto crucial é que a extrema direita israelense teria avançado com seus planos se percebesse apoio irrestrito da Casa Branca. O plano de paz de Trump, com seus 21 pontos e ênfase em cessar-fogo, autogoverno palestino e presença de forças multinacionais em Gaza, mostra que, pelo menos por enquanto, o apoio americano à agenda de Netanyahu deixou de ser absoluto.
Mas a implementação da proposta enfrenta grandes desafios. Um diplomata ocidental, favorável às ideias de Trump, pondera: “Lembremo-nos de que estamos no Oriente Médio, então há apenas 2% de chance de que funcione.” A realidade é que uma solução política permanente ainda está muito distante. A maioria de israelenses e palestinos não apoia atualmente uma solução de dois Estados.
Objetivos imediatos
Apesar das incertezas, há objetivos claros e concretos que justificam o plano. Pôr fim à matança em Gaza e libertar os reféns restantes são metas que podem ser alcançadas independentemente do desfecho político mais amplo. Especialistas acreditam que, uma vez conquistados esses objetivos humanitários, seria possível reconstruir gradualmente a ideia de dois Estados para dois povos, retomando um caminho que há décadas se mostra difícil, mas ainda necessário.
O cenário é delicado: Israel enfrenta críticas internacionais, a Palestina busca reconhecimento e estabilidade, e Trump se reposiciona como mediador pragmático, aproximando sua política de normas históricas de resolução de conflitos, mesmo que a solução definitiva ainda pareça distante.
Com informações de Financial Times*