A mão invisível que impõe medo e controle nos EUA

Ex-assessores relatam que Miller ignora protocolos e age com urgência messiânica, normalizando práticas autoritárias dentro do governo / Montagem FT

Enquanto aliados aplaudem, críticos alertam: o extremismo de Miller ameaça direitos humanos, instituições e o equilíbrio democrático americano


Em tempos de crise democrática, não são apenas os líderes eleitos que moldam o destino das nações. Às vezes, o verdadeiro poder reside nas sombras — nas mãos de conselheiros não eleitos, ideólogos radicais e burocratas que operam com a frieza de quem acredita estar salvando uma “civilização” em colapso. Nos Estados Unidos de Donald Trump, essa figura é Stephen Miller: o estrategista por trás do trono, o cérebro da linha dura, o “primeiro-ministro” de um projeto político que ameaça os pilares da democracia liberal americana.

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Miller, vice-chefe de gabinete da Casa Branca no segundo mandato de Trump, não é um nome novo na política norte-americana. Desde 2017, quando ajudou a redigir a proibição de entrada de cidadãos de países de maioria muçulmana e a política de “tolerância zero” que separou milhares de crianças de seus pais na fronteira sul, ele já demonstrava uma obsessão por políticas de imigração punitivas, xenofóbicas e profundamente anti-humanistas. Hoje, com Trump de volta ao poder, Miller não apenas retornou — ele se consolidou como o arquiteto central de uma agenda que busca não apenas governar, mas punir, marginalizar e redefinir quem merece pertencer à nação.

O “dragão” da extrema-direita

Recentemente, em um memorial ao ativista conservador Charlie Kirk — assassinado em circunstâncias ainda sob investigação —, Miller proferiu um discurso que soou como um manifesto de guerra ideológica: “Vocês não têm ideia do dragão que despertaram”, disse, voltando-se contra os “inimigos” do movimento Make America Great Again. “Vocês não são nada. Vocês são maldade. Vocês são ciúme. Vocês são inveja. Vocês são ódio.”

Essas palavras não são meras bravatas retóricas. Elas emanam de um homem que detém o poder real de transformar ódio em política de Estado. Miller não apenas fala — ele executa. Sob sua orientação, o governo Trump já enviou fuzileiros navais às ruas de Los Angeles, classificou o Partido Democrata como uma “organização extremista doméstica”, e defendeu publicamente a suspensão do habeas corpus, um dos mais antigos direitos constitucionais que protegem os cidadãos contra detenções arbitrárias.

Essa escalada autoritária não é acidental. É deliberada. É ideológica. E é profundamente perigosa.

A máquina de criminalização

Miller construiu sua carreira política sobre a criminalização sistemática dos imigrantes. Seu foco não está em políticas de integração, justiça social ou coesão comunitária — está em criar um inimigo interno. Durante o primeiro governo Trump, ele pressionou burocratas para que coletassem histórias de imigrantes envolvidos em crimes, mesmo sem condenação, com o objetivo explícito de “pintar esse quadro de que os imigrantes são perigosos para os americanos”. Agora, no segundo mandato, essa lógica se aprofundou: agentes de imigração invadem audiências judiciais para prender solicitantes de asilo; trabalhadores latinos são abordados em estacionamentos; e o governo busca revogar o direito constitucional à cidadania por nascimento.

Tudo isso ocorre sob o pretexto de “salvar a civilização ocidental” — uma narrativa que ecoa os piores capítulos da história europeia do século XX. Curiosamente, Miller é filho de uma família judia cujos antepassados fugiram do antissemitismo na Europa. Seu próprio tio, David Glosser, lembrou com horror que, se as políticas de Miller tivessem existido no início do século passado, sua família teria “subido pelas chaminés dos crematórios”. A ironia trágica é que Miller, hoje, replica em solo americano a mesma lógica de exclusão que quase exterminou os seus.

A guerra contra as instituições

Mas o alcance de Miller vai muito além da imigração. Ele é o estrategista-chefe de uma ofensiva mais ampla contra as instituições democráticas: universidades, escritórios de advocacia, meios de comunicação, organizações culturais. Tudo o que representa o pensamento crítico, a diversidade de ideias ou a defesa dos direitos humanos é visto como um alvo legítimo. Em seu mundo, não há espaço para oposição — apenas para submissão ou eliminação.

Essa visão totalitária se reflete na forma como ele opera dentro do governo. Ex-assessores relatam que Miller despreza protocolos, ignora conselhos jurídicos e age com uma urgência quase messiânica. “Vamos só fazer isso”, dizia ele, mesmo diante de riscos constitucionais evidentes. O resultado? Um recorde de 25 liminares federais emitidas contra o governo Trump nos primeiros 100 dias do mandato — quase sete vezes mais que no mesmo período da administração Biden. Para Skye Perryman, do grupo Democracy Forward, a explicação é clara: “Parece que estão permitindo que alguém que não é advogado comande sua estratégia jurídica.”

A normalização do extremismo

Talvez o mais alarmante na ascensão de Miller seja a forma como seu extremismo foi normalizado. O que antes era considerado marginal — a defesa da deportação em massa sem devido processo legal, o uso de leis do século XVIII para justificar medidas autoritárias, a demonização de adversários políticos como “inimigos da civilização” — agora é política de governo. E pior: é aplaudido por uma base que vê nisso não uma ameaça à democracia, mas uma “limpeza” necessária.

Aliados de Miller argumentam que ele “lê bem o eleitorado” e que suas políticas têm “aceitação popular”. Mas essa é uma falácia perigosa. A popularidade de medidas autoritárias não as torna legítimas — muito menos democráticas. Pelo contrário: a história mostra que regimes autoritários frequentemente nascem com apoio popular, alimentado pelo medo, pela desinformação e pela promessa de ordem em tempos de caos. Miller sabe disso. E explora isso com maestria.

A resistência é necessária

Diante desse cenário, a resistência não é apenas um direito — é um dever. A democracia não se defende sozinha. Ela precisa de cidadãos atentos, de instituições fortes, de uma imprensa livre e de uma sociedade civil organizada. A luta contra o projeto de Miller e Trump não é uma luta partidária — é uma luta pela alma dos Estados Unidos.

É simbólico que, no mesmo memorial onde Miller incitou o ódio, a viúva de Charlie Kirk tenha escolhido o perdão. “A resposta para o ódio não é ódio”, disse Erika Kirk, em um gesto que contrastou profundamente com a retórica vingativa do conselheiro presidencial. Sua fala foi um lembrete poderoso: a civilização que Miller diz querer salvar não se sustenta pela força, mas pela empatia; não pela exclusão, mas pela inclusão; não pelo medo, mas pela esperança.

Stephen Miller pode ser a “mão do rei”, mas os reis caem — e as mãos que os sustentam também. A história julgará com rigor aqueles que, em nome de uma falsa pureza nacional, tentaram apagar a diversidade, a justiça e a humanidade que fazem dos Estados Unidos — ou deveriam fazer — um farol de liberdade para o mundo.

Enquanto isso, cabe a todos nós garantir que esse farol não se apague.

Com informações de Financial Times*

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