Retração do mercado chinês e tarifas comerciais agravam a crise, ameaçando a sobrevivência de milhares de fazendas familiares
No coração agrícola dos Estados Unidos, a temporada de colheita de soja de 2025, que deveria ser sinônimo de expectativa e esperança, transformou-se em um retrato de desespero. Pressionados por custos crescentes, clima extremo e instabilidade no comércio internacional, agricultores relatam que estão diante de uma das piores crises das últimas décadas.
“Estamos em uma situação significativa e desesperadora, em que nenhuma das culturas que os agricultores cultivam atualmente gera lucro. Eles nem sequer atingem o ponto de equilíbrio”, declarou Stefan Maupin, diretor executivo do Conselho de Promoção da Soja do Tennessee, ao site Tennessee Lookout.
Perdas bilionárias e safra comprometida
Este ano, os produtores norte-americanos cultivaram cerca de 1,75 milhão de acres de soja — o equivalente a mais de 708 mil hectares. No entanto, em vez de colheitas abundantes, a previsão é de prejuízos severos. Segundo o Instituto de Agricultura da Universidade do Tennessee, as perdas para a soja no estado podem chegar a quase US$ 110 milhões apenas em 2025.
As condições climáticas agravaram ainda mais a crise. Inundações na primavera seguidas de um verão seco e castigante reduziram drasticamente a produtividade. O Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) havia projetado um rendimento médio de 53,5 bushels por acre, mas agricultores do Tennessee dizem que essa estimativa é otimista demais. Para muitos, a realidade deve ficar em torno de 30 bushels por acre, um número alarmante diante do investimento feito.
Leia também:
Khamenei rejeita diálogo com EUA e afirma riscos ao Irã
Síria admite ‘medo de Israel’
Excesso de IA cansa equipes e atrasa resultados
Custos altos e preços em queda
Além da instabilidade climática, os agricultores convivem com custos crescentes. Despesas com fertilizantes, terras e maquinário agrícola dispararam, ao mesmo tempo em que o preço da soja no mercado internacional despencou. O site Newser relatou que essa combinação cria uma equação insustentável, onde cada acre cultivado representa mais prejuízo.
Um relatório da Universidade do Tennessee mostrou a dimensão do problema: com base em uma produtividade média de 50 bushels por acre, os produtores devem perder cerca de US$ 84 por acre até meados de agosto. Para um agricultor com 3 mil acres, isso significa um rombo próximo de US$ 250 mil em uma única temporada.
A perda da China e o futuro incerto
Talvez o golpe mais duro para os produtores seja a retração no mercado externo. Historicamente, a China foi o maior comprador da soja norte-americana, garantindo parte essencial da renda dos agricultores. Hoje, a volatilidade das tarifas comerciais e tensões políticas reduziram drasticamente esse fluxo, abrindo uma ferida que ameaça a sustentabilidade de longo prazo do setor.
No campo, entre máquinas que colhem grãos abaixo do esperado e contas que não fecham, a sensação é de desalento. Para muitos, a safra de 2025 ficará marcada não apenas pelas perdas financeiras, mas também pela incerteza em relação ao futuro da agricultura nos Estados Unidos.
Enquanto governos discutem tarifas e mercados globais, milhares de famílias rurais lutam para sobreviver em meio a dívidas crescentes e ao peso de uma colheita que, ao invés de garantir estabilidade, se transformou em sinônimo de ruína.
Frustração e risco de perder uma geração de fazendas
A crise no setor agrícola não se resume apenas a números e previsões econômicas. Ela já começa a afetar a vida de milhares de famílias rurais que sustentam a produção de soja no país.
“Os produtores estão expressando crescente frustração”, relatou o site Newser. “Muitos alertam que a situação atual pode se estender por anos e exterminar uma geração de fazendas familiares.”
O alerta foi reforçado por Caleb Ragland, presidente da Associação Americana de Soja, em carta enviada ao presidente Donald Trump em agosto. “Os produtores de soja dos EUA não podem sobreviver a uma disputa comercial prolongada com nosso maior cliente”, escreveu Ragland, em referência direta à China. Em entrevista ao Nation of Change, ele foi ainda mais categórico: “Dependemos do mercado chinês.”
Colheita sem compradores
No Dakota do Norte, onde os agricultores estão a poucas semanas da colheita, o clima não é de celebração, mas de apreensão. O produtor Mike Appert relatou à emissora KFYR-TV que até agora não houve registros de vendas significativas. “Acho que este ano, na colheita da soja, vamos testemunhar o que pode acontecer se você tiver um monte de grãos e nenhum cliente para abastecê-los”, afirmou.
A queda nos preços da commodity tem agravado a situação. No ano passado, a soja era vendida a US$ 12 por bushel (cerca de US$ 441 por tonelada métrica). Hoje, o preço caiu para US$ 10 por bushel (aproximadamente US$ 367 por tonelada métrica), o que obrigou muitos produtores a armazenar a safra em silos em vez de vendê-la. “Não posso vender a esse preço tão baixo. A situação das tarifas é um pouco mais difícil para nós porque não é possível fazer hedge ou administrar isso”, lamentou Appert.
Ajuda governamental insuficiente
Diante desse cenário, o Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) anunciou, na última sexta-feira, um segundo pagamento de assistência econômica para produtores elegíveis da safra de 2024. A medida, no entanto, não trouxe alívio. “Embora autoridades federais tenham discutido programas de auxílio para ajudar os agricultores… o sentimento geral é sombrio”, destacou o Newser.
O produtor Chad Johnson, de Dakota do Sul, criticou duramente a postura das autoridades. “Sei que várias perguntas foram feitas a eles e, por falta de uma palavra melhor, eles as ignoraram”, disse em entrevista ao Dakota News Now.
A gravidade da crise é confirmada por números oficiais. A Federação Americana de Agências Agrícolas (AFA) informou que os tribunais registraram 216 falências de fazendas em 2024, um aumento de 55% em relação a 2023.
Johnson expressou sua preocupação à emissora South Dakota Public Broadcasting: “Precisamos de ajuda agora. Eles precisam começar a fazer alguma coisa. Ou acabar com as tarifas ou chegar a um acordo comercial para acabar com essas tarifas, para que possamos começar a construir sobre o que temos feito por muitos e muitos anos.”
O dilema do futuro
No Tennessee, Stefan Maupin, do Conselho de Promoção da Soja, teme que muitos agricultores não consigam atravessar 2025. “Eles estão colhendo agora”, disse. O problema, segundo ele, é que a maior parte das contas é paga apenas após a venda da safra — e neste ano, não haverá fluxo de caixa suficiente para cobrir os custos.
O agricultor Mike Dobesh, de Nebraska, compartilha da mesma angústia. Ele questiona como será possível garantir financiamento para o próximo ciclo agrícola se o atual já mergulha em prejuízo. “Se não gerar fluxo de caixa agora e você estiver com dificuldades para pagar seu empréstimo operacional, como conseguirá financiamento para o próximo ano se não há nada de positivo à vista?”, questionou em entrevista à KSNB.
Dobesh, assim como muitos outros produtores, espera que as lideranças políticas em Washington façam mais do que discursos. “Esperava que os políticos americanos pudessem fazer mais para lutar pelos agricultores”, disse, em tom de desabafo.
Entre silos cheios, dívidas acumuladas e incertezas no comércio internacional, os agricultores de soja dos EUA veem a cada dia mais distante a perspectiva de estabilidade. Para muitos, a safra de 2025 pode não significar apenas um ano ruim, mas sim o ponto de ruptura para milhares de famílias que sustentaram por gerações a base agrícola do país.
Impactos econômicos ampliam pressão sobre agricultores
Enquanto os produtores de soja lutam para sobreviver à queda de preços e à perda de mercados, novos dados econômicos divulgados nesta sexta-feira (26) mostram que a inflação do consumo nos Estados Unidos segue em linha com projeções, adicionando mais uma camada de complexidade ao cenário para o setor agrícola.
O núcleo do índice PCE (Personal Consumption Expenditures), que exclui os preços voláteis de alimentos e energia, subiu 0,2% em agosto, após alta de 0,3% em julho, informou o Departamento de Comércio. O índice completo, que inclui todos os itens, avançou 2,7% no mês, em conformidade com as expectativas de economistas consultados pela Reuters.
O PCE é o indicador preferido pelo Federal Reserve (Fed) para tomar decisões de política monetária, e a estabilidade relativa do núcleo da inflação sugere que o banco central pode manter suas estratégias sem mudanças drásticas, pelo menos a curto prazo.
Gastos do consumidor mantêm crescimento, mas desigualdade persiste
Em paralelo, os gastos dos consumidores americanos surpreenderam positivamente, crescendo 0,4% em agosto, acima da projeção de 0,2%. Esse aumento ocorre mesmo com a desaceleração do mercado de trabalho, que tem registrado um ritmo de criação de empregos mais lento nos últimos três meses.
Especialistas destacam que esse comportamento está sendo impulsionado principalmente por famílias de alta renda, beneficiadas por um mercado de ações robusto e preços elevados de imóveis, que elevaram a riqueza total das famílias para um recorde de US$ 176,3 trilhões no segundo trimestre, segundo dados do Fed. Por outro lado, famílias de baixa renda continuam enfrentando dificuldades, arcando com a maior parte do impacto do aumento nos preços de produtos devido às tarifas de importação.
O comportamento do consumo tem impacto direto sobre o crescimento econômico. O Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA avançou a uma taxa anualizada de 3,8% no segundo trimestre, a mais forte em quase dois anos. Para o terceiro trimestre, as estimativas apontam para uma desaceleração, convergindo para um crescimento anualizado de 2,5%.
Apesar do aumento nos gastos, economistas esperam que a inflação mais elevada e os preços impactados por tarifas reduzam o consumo até o final do ano. O efeito das tarifas do governo Trump tem sido amortecido parcialmente pelas empresas, que venderam estoques acumulados antes da entrada em vigor das medidas e, em alguns casos, absorveram parte do custo adicional.
Reação dos mercados
Após a divulgação dos dados, os futuros de Nova York registraram alta, enquanto os rendimentos dos títulos do Tesouro americano caíram. No Brasil, o dólar passou a operar em leve baixa, refletindo a influência dos indicadores americanos sobre o mercado global.
A pressão sobre os agricultores
Para os produtores de soja, o cenário econômico revela um contraste cruel: enquanto a economia em geral cresce e a riqueza das famílias mais abastadas atinge recordes históricos, os agricultores enfrentam uma combinação de queda nos preços da soja, aumento nos custos de produção, tarifas comerciais e dificuldades de escoamento da safra. Essa disparidade intensifica a sensação de urgência no campo, e muitos questionam se políticas federais ou acordos internacionais conseguirão oferecer algum alívio concreto antes que seja tarde demais.
Entre prejuízos, safras armazenadas e mercados externos instáveis, o setor de soja americano atravessa uma das temporadas mais críticas de sua história, e o horizonte permanece incerto tanto para produtores quanto para o mercado agrícola global.
Com informações de Global Times*