A flexibilização para criptomoedas aumenta risco de fraudes e colapsos, refletindo uma política pró-lucro sem preocupação com segurança
Por mais que seus defensores insistam em apresentá-la como “pragmática” ou “pró-mercado”, a nova direção da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC) sob a liderança de Paul Atkins — nomeado por Donald Trump — não é neutra, técnica ou despolitizada. É, antes de tudo, profundamente ideológica. Trata-se de uma agenda deliberada de desmonte da supervisão financeira, disfarçada de eficiência regulatória, que coloca os interesses corporativos acima da transparência, da justiça climática e da proteção dos investidores comuns.
A recente proposta de eliminar os relatórios financeiros trimestrais — exigência básica de transparência desde a Grande Depressão — é apenas a ponta do iceberg de uma política econômica que, desde o primeiro mandato de Trump, tem como norte a desregulamentação irrestrita.
A promessa de Atkins de substituir esses relatórios por divulgações semestrais, alegando “redução de custos” e “flexibilidade”, ignora propositalmente o papel fundamental que a periodicidade rigorosa desempenha na manutenção da confiança nos mercados. Menos informação não é mais liberdade; é mais opacidade. E opacidade, na esfera financeira, beneficia sempre os mesmos: grandes corporações, insiders e especuladores institucionais — não os pequenos investidores, cuja proteção a SEC jurou defender.
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A crítica de Atkins às normas europeias de sustentabilidade — rotuladas como “ideológicas” — é particularmente reveladora. Em vez de reconhecer que os riscos climáticos são, de fato, riscos financeiros reais — como demonstram incêndios florestais, enchentes, secas e colapsos na cadeia de suprimentos —, o novo presidente da SEC prefere desqualificar toda a agenda de transparência socioambiental como um capricho progressista.
Essa postura não apenas nega a ciência, mas também ignora o fato de que investidores institucionais globais, incluindo fundos de pensão e gestoras de ativos, já exigem há anos dados claros sobre emissões, governança e impactos sociais. Longe de serem “ideológicas”, essas exigências respondem a uma demanda de mercado real: a de investir com responsabilidade e previsibilidade em um mundo em crise climática.
A decisão da SEC de abandonar a defesa de regras que exigiriam a divulgação de riscos climáticos é, portanto, um retrocesso não só regulatório, mas civilizatório. É a escolha deliberada de proteger lucros de curto prazo em detrimento da estabilidade de longo prazo — inclusive financeira. Empresas que não mensuram sua exposição ao aquecimento global estão, na prática, escondendo passivos futuros de seus acionistas. Isso não é “proteção ao investidor”; é facilitação da irresponsabilidade corporativa.
Além disso, a flexibilização das regras para o setor de criptomoedas — outro pilar da nova orientação da SEC — levanta sérias preocupações. Sob a gestão de Gary Gensler, a agência buscou impor alguma ordem a um mercado marcado por fraudes, colapsos e manipulações (como os casos da FTX e da Terra/Luna). A abordagem mais branda de Atkins, embora apresentada como “menos hostil à inovação”, corre o risco de abrir as portas para novos esquemas predatórios, especialmente contra investidores menos informados. A história recente mostra que, sem supervisão firme, o “mercado” não se autorregula — ele se devora.
A retórica de Atkins de que a SEC deve se afastar de “ideólogos” e focar apenas no “bem-estar dos investidores” é irônica, pois sua própria agenda é profundamente ideológica: é a ideologia do neoliberalismo tardio, que confunde desregulamentação com liberdade e lucro corporativo com prosperidade coletiva.
Essa visão ignora que a regulação não é um obstáculo ao mercado, mas seu alicerce. Foi a criação da SEC, em 1934, justamente após o colapso de 1929, que permitiu a construção de um dos mercados de capitais mais robustos do mundo — não apesar da regulação, mas por causa dela.
Ao sugerir que a frequência ideal de relatórios deve ser ditada “pelo mercado”, Atkins entrega o jogo: na prática, quem dita as regras são os CEOs e conselhos de administração das grandes corporações, não os acionistas minoritários.
A experiência britânica, citada como exemplo, é enganosa: mesmo após a adoção do modelo semestral em 2014, muitas empresas mantiveram relatórios trimestrais por pressão dos investidores. Nos EUA, porém, sem a obrigatoriedade legal, há risco real de uma corrida para o fundo do poço da transparência — especialmente entre empresas menores, mais vulneráveis à manipulação e menos escrutinadas pela mídia.
Por fim, a crítica à Europa não é apenas geopolítica; é um sinal de que os EUA sob Trump buscam se tornar um paraíso regulatório — um lugar onde empresas possam operar com o mínimo de responsabilidade social, ambiental ou financeira. Isso pode atrair capital de curto prazo, mas afasta investidores de longo prazo, compromete a resiliência econômica e mina a confiança democrática nas instituições financeiras.
A política econômica de Trump, reencarnada agora na nova SEC, não é “pragmática”. É uma escolha ideológica clara: priorizar o lucro corporativo sobre a transparência, o crescimento imediato sobre a sustentabilidade, e a elite financeira sobre os cidadãos comuns. Em nome da “eficiência”, está se construindo as bases para a próxima crise — e, como sempre, serão os mais vulneráveis que pagarão a conta.
Com informações de Financial Times*