Não é apenas o governo que para: é a confiança do povo em suas instituições que se esvai a cada impasse orçamentário
Nos Estados Unidos, a paralisação do governo federal não é um evento raro — mas sua recorrência não a torna menos absurda. Pelo contrário: cada nova interrupção orçamentária revela com mais clareza o colapso funcional de um sistema político cada vez mais refém da polarização ideológica, do populismo tóxico e da incapacidade de governar com responsabilidade. A mais recente paralisação, desencadeada pela incapacidade do Congresso de aprovar um orçamento básico de financiamento, não é apenas um impasse burocrático. É um ataque direto à segurança, à saúde, à dignidade e ao futuro de milhões de americanos — enquanto os responsáveis por essa crise continuam recebendo seus salários inteiros, protegidos por privilégios constitucionais que parecem cada vez mais anacrônicos diante da realidade do povo.
A pergunta que todos deveriam fazer — e que poucos políticos parecem dispostos a responder — é: por que, em pleno século XXI, o governo mais poderoso do mundo precisa “parar” porque seus líderes não conseguem se entender? A resposta, infelizmente, está entranhada na cultura política que se consolidou nos últimos anos, especialmente sob a influência de figuras como Donald Trump, que transformaram o conflito institucional em arma de retórica, e o caos governamental em moeda de troca eleitoral.
A máquina do Estado: paralisada, mas não desligada
Durante uma paralisação, o governo não “fecha” por completo. Ele entra em um estado de hibernação seletiva, mantendo apenas os serviços considerados “essenciais”. Mas o que é essencial? A resposta varia conforme a agência, a interpretação legal e, muitas vezes, o grau de pressão pública. O resultado é um mosaico de incertezas: militares continuam em missão, mas sem receber; controladores de voo seguem no radar, mas sem treinamento ou suporte; veteranos têm seus benefícios garantidos, mas não conseguem instalar lápides em túmulos de entes queridos. É um retrato grotesco de um Estado que, mesmo em crise, exige sacrifícios de seus servidores — mas não de seus líderes.
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Os militares, por exemplo, são obrigados a trabalhar sem salário. Sim: homens e mulheres que juraram defender a nação continuam em postos de combate, patrulha ou logística, enquanto seus vencimentos são congelados por um impasse político que não criaram. O Departamento de Assuntos de Veteranos mantém 97% de sua equipe ativa, mas fecha escritórios regionais e suspende canais de comunicação. É como se o país dissesse: “Agradecemos seu serviço — agora se virem sem resposta”.
Aviação em risco: voando no escuro
A Administração Federal de Aviação (FAA) permanece operante, mas com os olhos vendados. Controladores de tráfego aéreo — mais de 13 mil — trabalham sem remuneração, enquanto programas de treinamento, inspeção e análise de segurança são interrompidos. Grupos do setor já alertaram: os efeitos dessa paralisação não se limitam aos dias sem orçamento. Eles se estendem por meses, talvez anos, comprometendo a liderança dos EUA na aviação civil e aumentando os riscos de acidentes futuros. Enquanto isso, congressistas seguem voando em jatos privados, blindados das consequências de suas próprias decisões.
Saúde em suspenso: quando a prevenção vira luxo
O impacto na saúde pública é ainda mais alarmante. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) mantêm vigilância sobre surtos, mas não podem orientar estados sobre HIV, diabetes ou overdose de opioides — três das maiores crises de saúde pública do país. O NIH, principal motor da pesquisa biomédica americana, interrompe a admissão de novos pacientes em seu hospital de referência. A FDA, responsável pela segurança de alimentos e medicamentos, deixa de analisar novos remédios e perde a capacidade de monitorar ingredientes em rações animais — o que afeta diretamente a cadeia alimentar nacional.
Tudo isso ocorre não por falta de recursos, mas por falta de vontade política. Enquanto milhões de americanos dependem desses serviços para sobreviver, os políticos preferem jogar roleta russa com o orçamento, apostando que o outro lado cederá primeiro.
Famílias vulneráveis à mercê da política
O Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP) e o WIC — que alimentam milhões de crianças, gestantes e famílias de baixa renda — seguem funcionando, mas com um relógio contando regressivamente. O WIC, segundo sua própria associação nacional, pode esgotar seus recursos em uma semana. Isso significa que mães e bebês podem ficar sem leite, frutas ou suplementos vitamínicos por causa de um impasse entre adultos que não conseguem aprovar um orçamento de US$ 1,7 trilhão.
É difícil imaginar uma forma mais cruel de punir os mais pobres por um conflito que eles não provocaram.
Parques abertos, democracia fechada
Até os parques nacionais — símbolos da grandeza natural e histórica dos EUA — são afetados. Trilhas permanecem abertas, mas centros de visitantes fecham. O Monumento a Washington, ícone da capital, fica inacessível. O Smithsonian, templo do conhecimento público, opera com os dias contados, graças a fundos remanescentes. É como se o país dissesse: “Venham admirar nossa história — mas não esperem que a mantenhamos viva”.
O privilégio dos que paralisam
Enquanto servidores federais — muitos deles da classe média trabalhadora — enfrentam a angústia de não saber quando receberão seus salários, Donald Trump, senadores e deputados continuam recebendo seus vencimentos integralmente. A Constituição os protege. Mas essa proteção, outrora justificada como forma de garantir a independência dos poderes, hoje soa como um escárnio. Como pode um sistema que exige sacrifícios dos que servem isentar os que governam?
Essa assimetria moral é o cerne da crise de legitimidade que assola a democracia americana. A paralisação não é um “acidente”. É um produto deliberado de uma cultura política que valoriza o confronto acima do consenso, o espetáculo acima da governança e o interesse partidário acima do bem comum.
A lição que não se aprende
Esta não é a primeira paralisação. Nem será a última — a menos que os eleitores exijam mudança. Mas enquanto figuras como Trump seguirem promovendo a ideia de que “o sistema está quebrado” como forma de justificar sua própria incapacidade de governar, o ciclo continuará. A paralisação vira ferramenta: não de negociação, mas de intimidação. E os verdadeiros custos são pagos por quem não tem voz no Capitólio.
Quando o governo para, o que realmente para é a confiança do povo nas instituições. E isso, ao contrário dos salários dos congressistas, não é recuperado retroativamente.