Kim Son Gyong denuncia manobras militares dos EUA, Coreia do Sul e Japão como ameaças diretas à segurança da península coreana
Em meio à retórica habitual de condenação e isolamento, a recente aparição do vice-ministro das Relações Exteriores da Coreia do Norte, Kim Son Gyong, na Assembleia Geral das Nações Unidas trouxe à tona uma questão central, mas frequentemente ignorada no debate internacional: o direito de um Estado à autodeterminação e à defesa soberana. Em um discurso mais moderado do que o habitual, mas firme em seus princípios, Kim reafirmou que o programa nuclear norte-coreano não é uma ameaça expansionista, mas um pilar de segurança nacional — uma resposta legítima a décadas de hostilidade militar e econômica por parte de potências ocidentais, especialmente os Estados Unidos.
A postura de Pyongyang não pode ser compreendida sem o devido contexto histórico. Desde o fim da Guerra da Coreia em 1953 — que terminou com um armistício, e não um tratado de paz — a península coreana permanece tecnicamente em estado de guerra. Durante mais de sete décadas, a Coreia do Norte tem vivido sob a sombra de uma presença militar massiva dos EUA em seu território vizinho, com dezenas de milhares de soldados estacionados na Coreia do Sul e exercícios militares conjuntos com frequência anual, cada vez mais sofisticados e de grande escala. Como destacou Kim Son Gyong, esses exercícios “estão quebrando todos os recordes anteriores em termos de escala, natureza, frequência e escopo”, e são percebidos, com razão, como simulações de invasão.
Nesse cenário, a opção nuclear não surge de uma lógica agressiva, mas defensiva. A Coreia do Norte, um país pequeno, economicamente isolado e constantemente ameaçado por sanções unilaterais e pressões diplomáticas, viu no arsenal atômico a única garantia contra uma intervenção externa. A história recente oferece lições dolorosas: países que desarmaram unilateralmente — como a Líbia de Muammar Gaddafi — acabaram sendo depostos com o aval ou a indiferença das mesmas potências que agora exigem o desarmamento norte-coreano. A lógica de segurança de Pyongyang, portanto, não é irracional; é profundamente realista.
É importante notar que, diferentemente do que muitos analistas ocidentais sugerem, a Coreia do Norte não busca dominar a região ou exportar seu modelo político. Seu discurso na ONU foi notavelmente contido: evitou insultos pessoais, não atacou diretamente líderes estrangeiros e focou sua crítica em “forças hegemônicas” e na “guerra tarifária indiscriminada” — termos que, embora genéricos, apontam claramente para a política externa dos Estados Unidos e seus aliados. Essa moderação estratégica indica que Pyongyang está disposto a dialogar, mas não a se submeter. E essa distinção é crucial.
A soberania, no caso norte-coreano, não é apenas uma palavra de efeito retórico. O programa nuclear está consagrado na Constituição do país, o que demonstra que ele é visto como um pilar institucional, não como uma moeda de troca negociável.
Quando Kim Son Gyong afirma que “nunca desistiremos da energia nuclear”, ele não está apenas repetindo um mantra ideológico; está reafirmando um compromisso constitucional com a defesa nacional. Em um mundo onde a soberania de países periféricos é frequentemente violada em nome da “ordem liberal internacional”, a postura norte-coreana representa uma resistência rara — e, para muitos países do Sul Global, admirável.
É verdade que a comunidade internacional, por meio do Conselho de Segurança da ONU, tem exigido repetidamente que a Coreia do Norte abandone seu programa nuclear. Mas essa exigência é profundamente assimétrica. Enquanto Pyongyang é pressionado a desarmar, os Estados Unidos mantêm o maior arsenal nuclear do mundo, modernizam suas ogivas e conduzem exercícios militares que simulam ataques nucleares contra a Coreia do Norte.
A hipocrisia dessa postura dificilmente passa despercebida em capitais do mundo em desenvolvimento, onde a lógica de “nós podemos, vocês não” é vista como mais um exemplo do duplo padrão das potências ocidentais.
Além disso, há sinais de que a diplomacia ainda pode avançar. O presidente sul-coreano Lee Jae Myung, embora defenda os exercícios militares conjuntos, propôs uma “coexistência pacífica” e a restauração da confiança intercoreana — uma abordagem que, se levada a sério, poderia abrir caminho para um novo entendimento.
Da mesma forma, o interesse renovado de Donald Trump em retomar negociações com Kim Jong Un, embora motivado por cálculos políticos próprios, indica que há espaço para o diálogo, desde que as condições sejam mutuamente respeitosas.
A Coreia do Norte, por sua vez, não está isolada. Seus laços com a China e a Rússia têm se fortalecido, não apenas por afinidade ideológica, mas por uma convergência estratégica contra o que ambos chamam de “hegemonismo”. Essa aliança não deve ser vista como uma ameaça à paz, mas como uma tentativa legítima de equilibrar o poder em uma região dominada por interesses unilaterais.
A presença de Kim Jong Un ao lado de Xi Jinping e Vladimir Putin em eventos simbólicos, como o desfile militar em Pequim, sinaliza uma nova configuração geopolítica multipolar — na qual a soberania dos Estados menores não é automaticamente subordinada aos interesses das grandes potências.
Em última análise, a questão nuclear norte-coreana não será resolvida com sanções, ameaças ou isolamento. Será resolvida com reconhecimento mútuo, respeito à soberania e garantias de segurança concretas.
Enquanto os EUA e seus aliados insistirem em exigir a capitulação unilateral de Pyongyang como pré-condição para qualquer diálogo, o impasse continuará. A Coreia do Norte tem o direito de existir, de se defender e de determinar seu próprio destino — como qualquer nação soberana. Negar esse direito não promove a paz; alimenta a desconfiança e perpetua o ciclo de tensão.
O discurso de Kim Son Gyong na ONU foi, acima de tudo, um lembrete: a paz não se constrói com imposições, mas com equilíbrio. E, em um mundo marcado por guerras, intervenções e desigualdades estruturais, o direito de um país pequeno a proteger sua soberania merece, no mínimo, ser ouvido com seriedade — não descartado como mera bravata.
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Com informações de NBC News*