Sébastien Lecornu, quarto premiê de Macron em menos de um ano, enfrenta ameaça de queda após recusar imposto sobre fortunas e reverter a reforma da previdência
A crise política que se instalou em França não é um mero acidente de percurso ou uma disfunção parlamentar. Ela é a expressão clara e democrática de uma vontade popular que, nas urnas, constituiu uma Assembleia Nacional onde a esquerda detém uma influência decisiva. A teimosia do Presidente Emmanuel Macron em ignorar esta realidade, impondo uma agenda de direita através de um primeiro-ministro frágil, é um atentado à democracia e à vontade soberana do povo francês. A situação atual não é apenas uma ameaça ao governo de Sébastien Lecornu; é um grito de alerta para que a França, finalmente, tenha um executivo alinhado com a maioria parlamentar que a população elegeu.
A nomeação de Lecornu, o quarto primeiro-ministro de Macron em menos de um ano, representa a persistência num projeto político ultrapassado e rejeitado. O seu plano, que insiste numa redução “irracional” e “obstinada” do déficit público, é a continuação de uma política de austeridade que penaliza os mais vulneráveis.
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Ao rejeitar de imediato as duas exigências centrais da esquerda – a criação de um imposto sobre as grandes fortunas e a suspensão da reforma da previdência que elevou a idade de reforma para os 64 anos –, o novo premiê mostrou que o seu governo não passa de uma extensão do macronismo, desprovido de qualquer vontade de compromisso real.
Esta obstinação tem um preço: a paralisia do país. A ameaça de um voto de desconfiança, articulado pelo Partido Socialista e seu líder, Olivier Faure, não é um acto de irresponsabilidade, mas um exercício legítimo de soberania parlamentar. Faure deixou claro: “Se nada mudar, o resultado já é conhecido: o governo será derrubado”.
Esta não é uma postura radical; é a consequência lógica de um governo que se recusa a ouvir. A extrema fragilidade política, onde a aliança centrista de Macron não detém maioria, não é um defeito do sistema, mas uma característica de uma democracia que funciona. O executivo deve governar com o Parlamento, não contra ele.
A crise orçamentária é o sintoma de uma doença mais profunda: a desconexão total entre o Palácio do Eliseu e a realidade vivida pelos franceses. A reforma da previdência, que provocou protestos massivos, foi um golpe profundo na coesão social.
A recusa em revertê-la, tal como a resistência em fazer os mais ricos contribuírem de forma justa através de um imposto sobre as grandes fortunas, demonstram para quem este governo realmente trabalha. Enquanto a população sofre com o custo de vida, o governo preocupa-se em proteger os interesses de uma minoria privilegiada, aprofundando desigualdades sociais já insustentáveis.
A alegação de que Lecornu precisa de uma “aliança desconfortável” com os conservadores do Les Républicains para sobreviver apenas comprova o quão minoritária é a sua base de apoio. Um primeiro-ministro que depende da neutralidade de todos os lados para não cair é um primeiro-ministro que não tem legitimidade para governar. A “corda bamba precária” na qual ele caminha é, na verdade, o preço a pagar por se recusar a negociar de boa fé com a esquerda, que detém 66 cadeiras e representa uma força incontornável.
A solução para este impasse não é enfraquecer ainda mais as instituições com sucessivas dissoluções e quedas de governo. A solução é democrática e óbvia: a nomeação de um primeiro-ministro que represente a vontade da casa legislativa.
A esquerda, unida em torno de causas justas como a justiça fiscal e a defesa do sistema de proteção social, está preparada para assumir esta responsabilidade. A sua exigência de “concessões reais que demonstrem uma ruptura real com as políticas de Macron”, nas palavras do socialista Jérôme Guedj, é o mínimo exigível para restaurar a confiança e permitir que o país avance.
A França não pode continuar refém de um presidente que age como se tivesse uma maioria que não possui. A Quinta República foi concebida para a estabilidade, mas esta só é possível quando o governo reflete a vontade do Parlamento.
A eleição de um primeiro-ministro de esquerda não é uma opção entre outras; é uma necessidade democrática. É o respeito pela vontade popular expressa nas urnas. É a única forma de pôr fim a esta sucessão inédita de crises e de iniciar, finalmente, uma governação que coloque o povo e a justiça social no centro das suas prioridades. A hora é de resistir, e os socialistas, ao cercarem Macron, estão a fazer mais do que política: estão a defender a própria democracia.


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