O thriller político de Kleber Mendonça Filho

Credito: Victor Jucá.

Ambientado entre 77 e o Brasil pós-Lula, O agente secreto conquista público e crítica no mundo inteiro

Por Priscila Miranda

O agente secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho, escapa das classificações fáceis e se afirma como uma obra ao mesmo tempo visceralmente brasileira e profundamente universal.

O diretor mobiliza os códigos do thriller — um gênero pouco explorado no cinema nacional — para criar uma linguagem própria, filtrada por sua memória pessoal e pela força da cultura popular. A narrativa atravessa dois momentos decisivos da história do país: a década de 1970, sob a ditadura militar, e o Brasil contemporâneo do período pós-Lula, marcado por transformações sociais profundas.

O cinema de gênero nunca teve presença consolidada no Brasil. Figuras como José Mojica Marins, o lendário Zé do Caixão, deixaram marcas, mas não criaram uma tradição contínua. Mendonça Filho retoma esse legado de forma inventiva: em vez de reproduzir fórmulas, constrói um “supragênero”, combinando suspense, realismo e consciência histórica. Nesse movimento, faz do cinema uma forma de pensar o país — entre passado e presente.

O filme alterna duas temporalidades que se iluminam mutuamente. De um lado, 1977, sob o peso do regime militar; de outro, o Brasil que emergiu após as políticas sociais dos governos Lula, quando filhos de trabalhadores se tornaram médicos, engenheiros e profissionais qualificados. Essa tensão entre opressão e ascensão social estrutura o olhar do diretor, que evita o didatismo e busca uma espessura humana e histórica.

O título, O agente secreto, faz eco a um clássico estrelado por Jean-Paul Belmondo nos anos 1970, mas sem relação direta com espionagem. Mendonça Filho se apropria do nome para reinventar o gênero, deslocando-o para o contexto brasileiro.

Um símbolo central costura a narrativa: o tubarão. Inspirado em lembranças de infância e em fatos reais, o animal se transforma em metáfora da ameaça difusa que ronda o país — tanto nos anos de chumbo quanto na incerteza contemporânea. Para quem cresceu nos anos 1970 e 80, o tubarão e o cinema popular da época — de Jaws aos Trapalhões — formam um repertório afetivo coletivo que o cineasta revisita com sutileza e emoção.

O longa também incorpora elementos do folclore pernambucano, como a figura mascarada de palha associada ao maracatu rural. Esses símbolos introduzem uma dimensão ancestral no meio urbano, conectando o moderno ao arcaico, o real ao mítico. É como se o Brasil profundo invadisse o enquadramento e reconfigurasse os códigos do cinema internacional.

Persistem ecos do surrealismo de Recife frio. Mendonça Filho filma um país onde o absurdo se confunde com o cotidiano, e o real parece constantemente prestes a se tornar sonho — ou pesadelo. O resultado é um thriller que não busca tensão pelo artifício, mas pela própria natureza paradoxal da vida brasileira.

Em síntese, O agente secreto é menos um filme de gênero do que o gesto de ambição estética e insubordinação política. Kleber Mendonça Filho transforma o suspense em espelho de um país que vive entre a farsa e a tragédia, o delírio e a resistência. Sua ficção não inventa o real — apenas o revela. E é justamente por isso que o filme, sendo tão brasileiro, alcança o universal: porque traduz, com precisão e afeto, a estranha normalidade do nosso absurdo cotidiano.

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