“A mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.” A frase de Glauber Rocha, em seu manifesto Estética da Fome, orienta sua própria obra-prima Deus e o Diabo na Terra do Sol e identifica um tema presente em outros filmes do Cinema Novo brasileiro. A cultura do cangaço, contada em verso, em prosa, em filmes, se encaixa nessa tradição de resistência de um povo oprimido, motivo universal da dramaturgia moderna.
O cineasta baiano Ducca Rios retoma essa tradição com Revoada – Versão Steampunk, seu segundo longa-metragem, que terá sua premiere na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que acontece de 16 a 30 de outubro.
No caso de Ducca, é um caminho até natural: sua primeira obra, Meu Tio José (2021), finalista em Annecy, o principal festival de animação do mundo, além de vencedor de diversos outros prêmios internacionais, tratava da luta contra a ditadura militar no Brasil, ao contar a história do assassinato de seu tio, um jovem militante de esquerda. Desta vez, com Revoada, ele usa a estética steampunk para reinterpretar a mitologia nordestina do cangaço e recontar uma história de rebeldia.
O fio dramático de Revoada é um clássico na ficção política: a insubordinação contra uma casta opressora. A narrativa se passa num ambiente desértico que remete às áreas mais inóspitas do sertão profundo brasileiro, onde o cangaceiro Lua Nova, junto com seus aliados, se insurge contra uma autoridade com poder bélico vastamente superior. O cangaço, no filme (assim como era na vida real), é formado por vários grupos espalhados pelo sertão. Quando um deles sofre um ataque traiçoeiro e suas lideranças são mortas pelas volantes (as tropas do governo), o protagonista parte com seu bando em busca de vingança contra os senhores da guerra que tentam controlar a região, numa jornada que mistura western, ficção científica e estética steampunk. O personagem é baseado em Corisco, figura lendária no Nordeste, o mais famoso cangaceiro depois de Lampião, conhecido por seus cabelos compridos e aloirados.
O sertão nordestino, cenário geográfico de Revoada (o cenário do filme é tão importante quanto os próprios personagens) pode ser comparado a Gaza. Enquanto o mundo digere horrorizado as notícias sobre o novo holocausto palestino, com centenas de milhares de mortos, feridos e mutilados pelo exército israelense, sob o olhar complacente dos governos ricos do norte global, vale lembrar que o Nordeste sofreu mais de uma tragédia semelhante. Apesar da obra não ser um documentário, mas uma fantasia distópica, vale resgatar um pouco do passado trágico do Nordeste brasileiro para entender seu fundo histórico.
O mais recente genocídio no Brasil aconteceu durante a ditadura militar, entre 1979 e 1983, quando o próprio governo ajudou os latifundiários a matar nordestinos de fome. Segundo estudo do IBASE, numa estimativa conservadora, morreram mais de 700 mil pessoas — grande parte crianças. Outros estudos falam em até 3 milhões de mortos. O regime impediu o acesso aos açudes e demais fontes de água, empurrou a população para regiões cada vez mais áridas e, sobretudo, fechou os olhos, bloqueou a produção de estatísticas, não criou programas de ajuda, e censurou qualquer publicação sobre a mortandade.
Essa tragédia produziu o último grande fluxo migratório que gerou os bolsões de miséria e violência nas metrópoles brasileiras. Assim como a seca de 1877-1879 — que matou 500 mil nordestinos com a cumplicidade dos governos imperiais — gerou o cangaço, essa tragédia do século XX acendeu o rastilho de pólvora que fez o crime organizado explodir e ganhar tanto espaço nas periferias urbanas do país.
Dessas tragédias nasceu também uma cultura de resistência que explica por que o eleitor nordestino tem sido o grande bastião em defesa de justiça social no Brasil. Berço de Luiz Inácio Lula da Silva, natural de Pernambuco, o Nordeste mantém o país à esquerda desde os anos 2000, porque seu povo aprendeu, com sangue, que resistir não é uma escolha, mas a única maneira de manter sua dignidade, sua vida, seu futuro.
A reação humana contra uma opressão continuada é invariavelmente a violência — seja na forma do cangaço, criminalidade, terrorismo, revolução. A resistência palestina, a Revolução Francesa, a independência americana — todos esses acontecimentos seguem o mesmo padrão. Os americanos não gostam de falar nisso, mas o historiador Holger Hoock, em seu livro Scars of Independence: America’s Violent Birth (2017), documenta como o processo revolucionário que levou à independência foi marcado por atos brutais dos colonos contra funcionários da Coroa Britânica. Não foram só os cangaceiros, nem o Hamas. É um padrão universal: toda opressão gera movimentos de resistência.
Mais nobre ainda, porém, é a violência sublimada na arte, porque produz efeitos duradouros e não cria armadilhas. As elites muitas vezes querem que o povo se utilize da violência física para usar como pretexto para exterminá-los, como vimos na Guerra de Canudos, no Brasil, e como estamos vendo em Gaza, na Palestina.
Com roteiro adaptado por Amanda Aouad, Ana Claudia Caldas e pelo próprio Ducca Rios a partir do filme homônimo de José Umberto Dias, Revoada se inscreve na grande tradição do cinema político de resistência. O diretor Ducca Rios bebe em fontes como Quentin Tarantino (Pulp Fiction) e George Miller (Mad Max), utilizando um traço inspirado em Joe Sacco e Katsuhiro Otomo, criador de Akira. Para compor a trilha sonora, o cineasta não poderia ter encontrado alguém melhor do que Lirinha, gênio criador do Cordel do Fogo Encantado, já que o músico é oriundo de Arcoverde, no sertão de Pernambuco, região onde a cultura do cangaço criou raízes profundas, pois é a terra natal de Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião.
Como completou Glauber Rocha em sua reflexão sobre a violência: “O amor que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação, mas um amor de ação e transformação.” Fazer um filme como Revoada requer esse amor de ação de que fala Glauber — um amor que transforma a tragédia nordestina em arte, a opressão dos povos em resistência, o silêncio dos humilhados em um grito de vitória e liberdade.
Leia aqui uma entrevista exclusiva com Ducca Rios, diretor de Revoada.
Abaixo o cartaz e o trailer.