A geração que viu nascer a televisão agora se perde entre notificações e silêncios, trocando o toque humano pelo consolo de uma tela acesa
Durante anos, o medo coletivo sobre o “vício em telas” mirou nos adolescentes: jovens enclausurados em seus quartos, hipnotizados por TikTok, jogos e selfies. Enquanto isso, uma revolução silenciosa e melancólica acontecia longe dos holofotes — entre os cabelos grisalhos da terceira idade. Agora, as mesmas telas que prometiam aproximar gerações estão se tornando a nova companhia dos idosos — e também, em muitos casos, o novo cárcere.
Os números são claros e inquietantes. No Reino Unido, clínicas que antes tratavam jovens dependentes de videogames agora recebem pacientes septuagenários. Uma mulher de 72 anos buscou tratamento por um vício compulsivo em jogos de celular. O fenômeno, que antes parecia impensável, vem crescendo em vários países. E enquanto governos e intelectuais discutem o impacto das redes sobre adolescentes, uma transformação silenciosa — e mais profunda — acontece na outra ponta da vida.
Segundo Ipsit Vahia, do Laboratório de Tecnologia e Envelhecimento da Universidade de Harvard, “alguns adultos mais velhos estão vivendo suas vidas cada vez mais através de seus celulares, da mesma forma que adolescentes às vezes fazem”. Mas há uma diferença essencial: enquanto a juventude é estudada, vigiada e debatida, a velhice digital é invisível.
Da televisão ao smartphone: o mesmo isolamento, agora portátil
Historicamente, a velhice sempre foi terreno fértil para a solidão. O tempo livre da aposentadoria, a redução da mobilidade e a perda de vínculos afetivos transformaram a televisão em companhia constante. No Reino Unido, pessoas acima de 75 anos passam mais de cinco horas e meia por dia diante da TV — cinco vezes mais que os jovens.
Mas agora, o brilho azul não vem apenas da tela da sala. Ele cabe no bolso. Em pouco mais de uma década, os idosos deixaram de ser analógicos para se tornarem hiperconectados. Hoje, segundo pesquisas internacionais, pessoas acima dos 65 anos superam os jovens na posse de tablets, smart TVs e leitores digitais. E as gigantes da tecnologia — sempre atentas ao lucro — descobriram nesse público um mercado bilionário: relógios que monitoram batimentos cardíacos, fones que funcionam como aparelhos auditivos, assistentes de voz que prometem “cuidar” da saúde.
Não se trata de altruísmo tecnológico, mas de marketing travestido de cuidado. As corporações da era digital entenderam que, numa sociedade envelhecida e carente de políticas públicas, os idosos buscam na tecnologia aquilo que o Estado e a comunidade deixaram de oferecer: atenção, companhia, segurança.
A solidão virou negócio
A solidão, que deveria ser combatida com convivência e laços sociais, tornou-se produto. Cada “ping” do WhatsApp, cada notificação do Facebook, cada joguinho de fazenda é um microalívio — e, ao mesmo tempo, uma microtransação. O conforto digital dos idosos tem preço, e ele é pago com tempo, dados pessoais e vulnerabilidade.
Enquanto adolescentes ainda têm pais, professores e terapeutas atentos ao uso excessivo de telas, os idosos enfrentam sozinhos o labirinto digital. Ninguém observa seus hábitos noturnos, ninguém nota o cansaço de quem passa horas rolando notícias, ninguém percebe o golpe que se disfarça em mensagem carinhosa. O WhatsApp — ferramenta vital para manter contato com a família — é também o principal canal de atuação de criminosos digitais, explorando a ingenuidade de quem busca apenas diálogo.
“Com os idosos, às vezes não há ninguém por perto”, alerta Henrietta Bowden-Jones, diretora de uma clínica britânica de vícios digitais. E quando há, poucos sabem o que acontece no interior daquela pequena tela.
O paradoxo da conectividade
A dependência digital na terceira idade revela um paradoxo doloroso do nosso tempo: quanto mais conectados, mais isolados nos tornamos. A tecnologia oferece companhia, mas também reforça o abandono social. É o sintoma de uma sociedade que transferiu aos algoritmos a função de acolher os seus.
A esquerda, que historicamente defendeu a solidariedade e a vida comunitária, precisa enxergar aqui uma nova forma de desigualdade. Porque o vício digital dos idosos não é apenas um problema individual — é o reflexo de um mundo que terceirizou o cuidado. Quando o Estado se ausenta, quando os vínculos coletivos se enfraquecem, quando os espaços públicos desaparecem, a tela se torna o último refúgio.
Enquanto o mercado transforma idosos em consumidores perfeitos — vulneráveis, solitários e dispostos a pagar por atenção —, políticas de convivência, inclusão e amparo social continuam minguando. O que chamam de “envelhecimento digital” é, na verdade, uma privatização da velhice.
Tecnologia: ferramenta ou muleta?
Não se trata de demonizar a internet. Ela pode ser libertadora. Para muitos idosos, é o meio de assistir a uma missa, participar de uma aula de ioga, rever a casa da infância em realidade virtual. É, muitas vezes, o elo entre a vida e o esquecimento. Há até estudos que associam o uso regular de dispositivos digitais à redução do declínio cognitivo.
Mas é preciso perguntar: a que custo? Quando a tecnologia substitui o encontro, o toque, o abraço, ela deixa de ser ferramenta e se torna muleta. E muletas são úteis — mas não nos fazem andar.
A geração que cresceu ouvindo rádio agora encontra nas telas um espelho do próprio tempo: um mundo que prefere a mediação ao contato, a distração ao diálogo. Os idosos se tornaram os novos viciados em telas não por fraqueza, mas por abandono.
O desafio político da nova solidão
O fenômeno exige mais que alertas médicos. Exige ação política. É urgente construir políticas públicas que devolvam à velhice o direito à convivência — centros culturais, espaços intergeracionais, programas de alfabetização digital crítica. Precisamos garantir que a tecnologia sirva à vida, e não o contrário.
A nova solidão digital é o retrato de uma sociedade que envelhece sem laços. E, se nada for feito, a promessa de “envelhecer conectado” será apenas o disfarce polido de um isolamento cada vez mais profundo.
O desafio do nosso tempo não é ensinar os idosos a usar o celular. É garantir que eles não precisem dele para se sentirem vivos.
Com informações de The Economist*