O mercado chama de esperança o que, na verdade, é sobrevivência de um modelo que troca justiça por estabilidade e vidas por dividendos
Enquanto o mundo real lida com suas contradições, o chamado “mercado financeiro” viveu sua própria utopia. Uma onda de euforia, descolada da realidade da maioria, varreu as bolsas globais, levando índices a recordes históricos. O Nikkei japonês, pela primeira vez, rompeu a barreira dos 50 mil pontos; o Kospi sul-coreano e os americanos S&P 500 e Nasdaq atingiram seus picos. Mas o que, exatamente, celebram os donos do capital?
Os jornais econômicos apontam dois motores para esse otimismo desenfreado: uma trégua comercial entre Estados Unidos e China e uma nova liderança no Japão. Uma análise fria dos fatos, no entanto, revela que a festa da elite financeira se baseia em fundamentos profundamente preocupantes: a escalada militarista e o pragmatismo cínico das superpotências, que colocam o lucro acima de qualquer tensão política.
O grande destaque da euforia, o Japão, oferece o retrato mais claro de quem ganha com esses recordes. A ascensão da nova primeira-ministra, Sanae Takaichi, não animou os investidores por promessas de distribuição de renda ou fortalecimento de serviços públicos. O mercado exulta por uma razão específica: Takaichi prometeu um “expressivo impulso aos gastos com defesa”.
O resultado foi imediato e cristalino. As ações que puxaram o índice para cima não foram de empresas de energia limpa ou de bem-estar social, mas sim da Kawasaki Heavy Industries, uma notória fabricante de armamentos, que viu seus papéis dispararem 7,1%.
A visita de Donald Trump ao Japão, agendada para os próximos dias, não visa discutir a paz, mas sim o “fortalecimento da aliança bilateral” — um eufemismo claro para mais cooperação militar e, por consequência, mais negócios para a indústria bélica.
Os analistas do sistema financeiro nem tentam disfarçar o entusiasmo. Nicholas Smith, da CLSA, celebra que “o Japão voltou a ser um lugar onde realmente se pode ganhar dinheiro”. Neil Newman, da Astris Advisory, vê um “impulso real” e prevê o Nikkei a 60 mil pontos, alimentado por investidores estrangeiros. O que eles comemoram, em suma, é o dividendo da guerra. O “espírito da época” que o estrategista da CLSA menciona é, ao que parece, o espírito do rearmamento.
O segundo motor da euforia é a reaproximação entre Washington e Pequim. Donald Trump e Xi Jinping devem se encontrar pela primeira vez desde 2019. Mas não se engane: não se trata de uma distensão humanitária, mas de uma necessidade mútua de garantir que as engrenagens do comércio global continuem girando.
Após meses de ameaças — controles chineses sobre terras raras e tarifas de 100% prometidas por Trump —, o que vemos é o capital forçando a mão da política. Como resumiu cirurgicamente Emmanuel Cau, do Barclays: “Está a regressar algum pragmatismo… [os EUA e a China] precisam um do outro.”
Eles precisam um do outro para quê? Para garantir o “comércio de IA e semicondutores”, como observou Giles Parkinson, da TrinityBridge. A “perspectiva de paz” é celebrada pois “remove um fator limitante” para esse comércio específico. Não à toa, as ações da gigante de tecnologia Nvidia subiram 2,8%.
O Secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, fala em uma estrutura “muito positiva”. Positiva, claro, para as corporações que dependem dessa cadeia de suprimentos. O alívio não é para os trabalhadores afetados pela guerra comercial, mas para o “apetite por risco” dos investidores, que agora podem voltar a apostar na normalização do fluxo de mercadorias.
Para completar o cenário, a euforia se apoia na especulação pura. Nos Estados Unidos, dados de inflação mais baixos que o esperado não foram lidos como um alívio para o bolso do cidadão comum, mas como um sinal verde para o Federal Reserve (o banco central americano) “flexibilizar ainda mais a política monetária”.
Como explicou Frank Benzimra, do Société Générale, o mercado espera que o Fed reduza os juros “mesmo sem haver recessão”. Em outras palavras, o sistema financeiro clama por dinheiro barato para continuar inflando os ativos, criando uma bolha de otimismo desconectada da produção real.
Os efeitos são claros: o ouro, tradicional refúgio contra a incerteza, despencou 3,1%. Os especuladores não precisam mais de segurança; eles querem risco. Em contrapartida, o cobre, termômetro da indústria, avança, impulsionado por esse otimismo fabricado.
O mundo financeiro, portanto, “respira aliviado” e “volta a sonhar alto”. Mas seus sonhos são feitos de gastos militares, pragmatismo corporativo e dinheiro fácil para especulação. Os recordes históricos do Nikkei e de Wall Street não são um triunfo do progresso, mas a celebração de um sistema que encontra seu maior “impulso real” nos fabricantes de armas e na garantia de que o comércio de semicondutores não será interrompido.
Com informações de Financial Times*