O cansaço de um sistema que respira por Wall Street

O banco central dos EUA se prepara para encerrar o QT, não por compaixão, mas porque o próprio sistema financeiro começa a sentir falta de ar.

O Federal Reserve, o todo-poderoso banco central dos Estados Unidos, se prepara para um novo malabarismo em sua já controversa política monetária, sinalizando o fim do chamado “aperto quantitativo” (QT). Mas por trás da linguagem técnica e das análises de mercado, esconde-se uma verdade incômoda: as ações do Fed, supostamente para garantir a estabilidade econômica, servem na realidade para proteger e inflar os interesses do grande capital financeiro, às custas dos trabalhadores e da população em geral.

Há três anos, o Fed embarcou na missão de enxugar a liquidez dos mercados, retirando trilhões de dólares em títulos. Esse processo, o QT, é o oposto do “Quantitative Easing” (QE), a flexibilização quantitativa que inundou a economia com dinheiro em momentos de crise, como em 2008 e na pandemia de Covid-19. Ambos os lados da mesma moeda, porém, revelam um padrão: a intervenção massiva do Estado para socorrer e fortalecer o sistema financeiro, criando uma falsa sensação de estabilidade que beneficia os especuladores e penaliza quem realmente produz.

A desculpa para o fim do QT? A “crescente preocupação com a escassez de recursos nos mercados monetários”. Bancos, novamente, recorrem a mecanismos de financiamento emergencial do Fed, algo que não se via desde o pico da pandemia. Ora, mas não foi o próprio Fed que criou essa escassez ao retirar liquidez? É o ciclo vicioso de um sistema que se auto-regula de forma perversa: primeiro, inunda o mercado com dinheiro para salvar os bancos de suas próprias irresponsabilidades; depois, retira esse dinheiro, criando uma “crise de liquidez” que serve de pretexto para mais intervenções, sempre com o pretexto de evitar o colapso do sistema.

A narrativa oficial pinta um cenário de ajustes técnicos, de “equilíbrio” entre liquidez abundante e reservas “amplas”. Mas a realidade é que o Fed está com medo. Medo de repetir 2019, quando o aperto de liquidez fez as taxas de curto prazo dispararem e gerou pânico. O pânico, evidentemente, não é pela miséria que isso causa à população, mas sim pela desestabilização dos lucros e do capital. A “principal questão que norteia o pensamento do Fed”, como bem coloca a economista-chefe da KPMG, é o “receio de um choque de liquidez”. Ou seja, o receio de que o próprio sistema que o Fed sustenta entre em colapso.

Enquanto isso, Jay Powell, o presidente do banco central, já sinaliza cortes na taxa básica de juros. Os mercados financeiros, sempre atentos aos sinais que garantem seus lucros, já precificam essa queda. E o que isso significa para o trabalhador? Menores retornos em suas poupanças, enquanto o dinheiro fácil continua a irrigar a especulação. A justificativa para a medida? “Enfraquecimento do mercado de trabalho norte-americano” e “redução dos temores de que a guerra comercial… volte a pressionar a inflação”. É a velha falácia de que juros baixos impulsionam a economia, quando na verdade apenas estimulam a tomada de risco e a formação de bolhas financeiras, sem resolver os problemas estruturais do desemprego e da desigualdade.

E não nos enganemos, mesmo com todo esse “aperto”, o balanço do Fed ainda é gigantesco: US$ 6,59 trilhões, mais de US$ 2 trilhões acima do nível pré-pandemia. Antes de 2008, era menos de US$ 1 trilhão. Isso demonstra a escala da intervenção estatal para sustentar um sistema intrinsecamente falho. O próprio secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, já classificou o QE como uma “expansão indevida de objetivos”, argumentando que ele contribuiu para ampliar a desigualdade social. Uma acusação que, como esperado, é “rejeitada pelos dirigentes do banco central”, afinal, quem pagaria por essa desigualdade se não o povo?

A verdade é que as políticas de expansão e contração de liquidez do Fed, embora vestidas com o manto da “eficácia para evitar colapsos financeiros”, são instrumentos de perpetuação de um sistema que concentra riqueza e poder nas mãos de poucos. A cada ciclo de QE e QT, a ilusão da “estabilidade” é reforçada, enquanto as contradições do capitalismo se aprofundam, deixando os mais vulneráveis à mercê de decisões tomadas em gabinetes fechados, longe da realidade de quem precisa trabalhar para sobreviver.

O fim do QT, portanto, não é um sinal de que a economia se estabilizou de forma orgânica. É mais um capítulo na saga do Fed para gerenciar as crises inerentes ao capitalismo, sempre priorizando a saúde dos mercados financeiros em detrimento do bem-estar social. A verdadeira estabilidade só virá quando o controle da economia estiver nas mãos daqueles que a produzem, e não de um punhado de banqueiros e especuladores.

Com informações de Financial Times*

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