Por Rollo — mais ácido que coletiva de governo após chacina, e com verdades que não vestem colete nem pedem escolta.(*)
O sol mal nasce na Penha, e o Rio já desperta em luto. Helicópteros cruzam o céu como abutres metálicos; mães buscam filhos entre ruínas. Nas manchetes, o massacre é “operação”; nas redes, o sangue vira conteúdo. Enquanto o Estado exibe imagens de câmeras corporais da PM e discursos, o verdadeiro espetáculo ocorre nas sombras — o da manipulação. Se é tão eficiente pra cercar favelas, por que nunca chega às coberturas onde vivem os CEOs do tráfico? Entre o marketing e o massacre, o que se vende é segurança. O que se entrega — é sangue.
O Brasil volta a encenar sua própria tragédia com o entusiasmo de quem não aprendeu nada. O estado do Rio de Janeiro acaba de protagonizar a operação policial mais letal de sua história recente — e, enquanto corpos ainda são retirados das favelas, a manchete oficial fala em “sensação de segurança”. Mas sensação pra quem, exatamente? Pra quem vive atrás de muros altos, insulfilme espesso, guaritas e câmeras 24h? Pra quem mora nas comunidades, segurança é um sorteio diário: quem volta pra casa, quem não.
O contraste é brutal. Enquanto a comunidade chora, o asfalto responde pesquisa. A tragédia é sempre estatística quando não toca o teu portão. E segurança pública, vale repetir, não é número: é o direito de viver sem medo — inclusive do Estado.
Do Coliseu Carioca à política do espetáculo
Em meu artigo anterior, “O paradoxo do coliseu carioca: da justiça do polegar ao ‘corretivo’ nas ruas”, escrevi sobre essa engrenagem macabra que transforma dor em entretenimento. A violência, quando televisionada, ganha trilha sonora, drone, câmera lenta e narrador. O sangue, no Rio, não escorre: vira espetáculo. E quanto mais o povo se acostuma, mais o poder se aproveita. A operação da semana repete o mesmo roteiro: helicópteros em voo panorâmico, entrevistas ensaiadas, manchetes sincronizadas. O show deve continuar — mesmo que o palco seja o cemitério.
Coincidências demais para chamar de acaso
Não é preciso ser roteirista pra notar que as “coincidências” se alinharam bem demais. A operação foi deflagrada justamente no único dia em que o presidente da República estava incomunicável, em voo internacional. Ao mesmo tempo, o governador trocava mensagens e reuniões com velhos aliados — alguns dos quais orbitam há décadas os subterrâneos da política fluminense. Coincidência? Difícil acreditar. Principalmente quando o relatório sobre as facções foi enviado ao estrangeiro, e não ao chefe de Estado do próprio país. Em que república um governador presta contas fora de suas fronteiras antes de falar com o governo federal? O roteiro é tão previsível quanto antigo: o governador veste a fantasia de xerife, o morro vira cenário e o sangue, combustível eleitoral. A diferença é que, desta vez, a plateia parece dividida entre a indignação e a indiferença.
A volta do espírito faroeste
Há pouco tempo, o estado discutia o fim da “Gratificação Faroeste” — aquele benefício pago a policiais que participavam de confrontos com morte. Uma aberração institucional que transformava a violência em prêmio e a execução em política pública. Foi extinta no papel, mas o espírito segue vivo: o do Estado que mata, comemora e ainda se autopremia pela matança. A operação que deixou mais de uma centena de mortos é a prova viva dessa mentalidade. Sem bônus em folha, mas com dividendos políticos. E para quem acha exagero, basta observar o comportamento: coletiva de imprensa triunfal, manchetes alinhadas, discurso moralista embalado em narrativa de “guerra ao crime”. Mas ninguém pergunta — e é aí que mora o silêncio ensurdecedor: se a segurança pública é tão eficiente, por que nunca prendeu os CEOs do crime organizado? Os verdadeiros donos da estrutura que financia armas, lavagem de dinheiro e corrupção política? Por que os helicópteros e drones nunca sobrevoam os endereços nobres da Zona Sul, da Barra ou das casas de veraneio em Angra?
Entre o discurso e o cadáver: a política que mata e se promove
Entre o discurso e o cadáver há um abismo chamado hipocrisia. Enquanto o governo posa para câmeras e microfones, vendendo a ilusão de uma “guerra ao crime”, quem cai no chão são sempre os mesmos: jovens pretos, filhos de pretos e pobres, empurrados desde cedo para uma roleta de exclusão que começa na escola precária e termina no caixão. Sem emprego, sem acesso a estudo, sem horizonte, o crime aparece não como escolha — mas como a única promessa de renda e pertencimento. E essa promessa cobra caro: prisão, morte ou ambos. O Estado transforma tragédia em estatística e funerais em discurso. A periferia, por sua vez, paga a conta — com o corpo, o luto e o silêncio.
E enquanto o sangue escorre pelas vielas, há quem bata palma. Uns por ignorância, outros por conveniência. Chamam de “combate ao crime”, mas o nome disso é outro: barbárie institucional com holofote. A fronteira entre ação legítima e massacre planejado é a mesma que separa a lei da vingança — e o Rio parece ter esquecido onde essa linha fica. E há perguntas que a propaganda não responde:
• Por que apenas uma facção foi alvo?
• Por que essa operação ocorreu justamente neste momento político?
• Por que o parlamento estadual estava em ponto facultativo, num feriado deslocado, que esvaziou qualquer reação institucional?
• E por que a sociedade aceita, sem estranhar, que governadores se reúnam com personagens do submundo político e econômico?
Quando o Estado se torna o algoz e o povo, a vítima e a própria plateia, a barbárie deixa de ser exceção — vira método. A cada corpo tombado, o poder alimenta sua própria narrativa, mas também a própria ruína. O que morre não é só o jovem de pele preta e futuro interrompido — morre junto a fé na justiça, a confiança na lei e o que resta de humanidade em quem assina a ordem de ataque. A violência que o Estado despeja sobre os morrosas comunidades retorna, cedo ou tarde, como sombra sobre os palácios. Porque o sangue pode secar no chão, mas o eco da injustiça não se cala. E é nesse eco que começa a conta espiritual da violência.
O preço espiritual da indiferença
Quem acredita que o karma não existe, que olhe pro Rio de Janeiro hoje. Nenhum poder sobrevive ileso ao peso de tantos cadáveres. O sangue pode secar no asfalto, mas a energia de cada vida ceifada se acumula como dívida moral. O que evapora, no fim, não é o sangue — é a empatia. E quando a empatia evapora, o medo toma forma. Volta em pesadelos coletivos, em medo difuso, em desumanização. Porque bala perdida não existe: toda bala tem dono, endereço e intenção política.
O verdadeiro inimigo não está na favela
Enquanto o Estado finge combater o crime, “enxugando gelo” e o próprio sangue que derrama, o verdadeiro poder do tráfico continua intacto — elegante, perfumado e acima de qualquer blitz. Ele não habita vielas, mas coberturas com vista pro mar. Não empunha fuzil, mas caneta. Não se esconde em becos e vielas, mas em gabinetes com ar-condicionado e tapete persa. São os CEOs da barbárie, homens de fala mansa e contas robustas, que transformam cada corpo caído em lucro político, cada operação em espetáculo, cada enterro em audiência. Enquanto a favela sepulta seus filhos, eles brindam contratos, fazem selfies e discursam sobre “ordem e progresso”.
O Rio, exausto, repete seu karma: um ciclo de violência que se traveste de política, de fé e de show. Mas toda farsa tem prazo de validade — e a história é implacável com quem brinca de Deus. Mais cedo ou mais tarde, o palco desaba, as luzes se apagam e o aplauso final se transforma em silêncio. Silêncio de culpa. Silêncio de retorno. Silêncio de karma.
(*) Rollo é ator profissional e ex-integrante do Conselho Estadual de Política Cultural do RJ na cadeira do Audiovisual. Atualmente, integra o elenco do espetáculo teatral “O Bem Amado”, de Dias Gomes, ao lado de Diogo Vilela, com direção de Marcus Alvisi.