Fica cada vez mais claro que o massacre ocorrido no Rio de Janeiro nesta semana, nos complexos da Penha e do Alemão, teve como objetivo a criação de um grande factoide. A intenção parece ter sido mudar a agenda nacional, arrastando a esquerda para armadilhas retóricas que pudessem prejudicar a popularidade do governo Lula e reabrir uma brecha para a direita sonhar com 2026. Numa manobra de esperteza política, não hesitaram em sacrificar a vida de policiais e inocentes, perpetrando uma das maiores chacinas da história do país.
Mas os operadores da extrema direita talvez tenham cometido um erro fatal. A afobação e ansiedade com que reagiram os fez parecer como abutres sobrevoando a carniça, o que revelou seu desespero e falta de cuidado — afinal, morreram quatro policiais. A reunião às pressas de governadores reacionários no Rio de Janeiro, com a presença de Ronaldo Caiado (Goiás), Jorginho Mello (Santa Catarina) e Romeu Zema (Minas Gerais), com a presença da vice-governadora do Distrito Federal, Celina Leão, e a participação online do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, gerou estranheza na opinião pública. A tentativa de politizar as mortes foi excessiva.
O debate sobre segurança pública sempre foi perigoso, pois mexe com o problema talvez mais complexo do Brasil: o combate à criminalidade em um país democrático cuja máquina estatal precisa respeitar as garantias fundamentais dos cidadãos. Sabemos que, no Brasil, essas garantias valem apenas para algumas pessoas e regiões. Não é de hoje que a polícia mata, mas é verdade também que o país desenvolveu ferramentas de proteção contra essas violações. Não por outra razão, a direita fascista, desde seus primórdios, elegeu as organizações de direitos humanos como suas principais adversárias, tentando colar nelas a imagem de “defensoras de bandidos”, mentalidade que elegeu Jair Bolsonaro.
Essa operação tem o cheiro inconfundível do bolsonarismo. Mas é preciso considerar também uma possibilidade ainda mais sinistra. Não podemos ignorar o padrão que se repete, no qual os Estados Unidos associam o narcotráfico ao terrorismo. Enquanto Donald Trump aumenta a retórica contra Colômbia, Cuba e Venezuela, vemos ecos dessa tática no Brasil. Flávio Bolsonaro sugere um “bombardeio” na Baía de Guanabara e, dias depois, Cláudio Castro executa uma ação dessa magnitude. Não seria surpresa se toda a simpatia de Trump com Lula estivesse associada a alguma manobra obscura pelas costas do governo brasileiro. É preciso ficar de olho.
A tática é uma adaptação do que Israel faz em Gaza: basta associar qualquer coisa ao Hamas para justificar atrocidades. Um bebê vira terrorista em potencial; ajuda humanitária se torna aliada do inimigo. Aqui, a lógica é a mesma: todos são amigos dos traficantes. Deputados que dialogam com a comunidade são cúmplices do crime. Assim se insufla o instinto homicida da sociedade para desviar a pauta. Em vez de discutir mobilidade urbana, redução da pobreza ou inflação, o brasileiro fica preso em debates macabros sobre matar ou não sem julgamento.
O combate à criminalidade é uma das mais importantes causas democráticas. Sem segurança não há democracia, porque não há liberdade. Por isso, a reação inicial do Ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, ao tratar o massacre como problema exclusivo do governo estadual, foi um erro. Quando Lula aterrizou no Brasil, vindo de viagem, percebeu imediatamente o equívoco. Determinou que Lewandowski fosse ao Rio aparecer ao lado de Cláudio Castro, criando um gabinete de emergência. A mensagem ficou clara: qualquer problema de criminalidade precisa ser assumido pelo governo federal. A população não quer saber o que diz a Constituição sobre competências estaduais.
O governo Lula precisa endurecer as ações e o discurso contra o crime organizado, naturalmente, sem perder a ternura, ou seja, oferecendo uma distinção clara com o discurso fascista da extrema direita. Com a popularidade do presidente em alta, o desemprego em queda e o salário mínimo em seu auge histórico, o cenário é favorável. A luta política embute uma guerra cultural que trabalha com fatores morais.
O lado bom, se é que é possível identificar algo positivo em uma tragédia dessa magnitude, é que a direita talvez tenha “queimado a largada”. Ao revelar sua estratégia, ela deu tempo ao governo Lula e à frente ampla democrática para desenvolverem um contra-ataque. Mesmo que as pesquisas apontem um desgaste do governo e do campo progressista na área de segurança pública, haverá também oportunidade de reverter o prejuízo com iniciativas precisas. Acelerar a PEC da Segurança Pública não basta. É preciso gerar empregos, usar tecnologia de forma massiva — encher o país de câmeras, com inteligência artificial e transparência — e investir pesado, pois o orçamento do Ministério da Segurança é pequeno para as necessidades do país. A urgência do tema vai obrigar o governo a aumentar muito os investimentos financeiros e humanos nesta área.