Tarso Genro: A operação, o Estado e a política da morte

A megaoperação que deixou mais de cem mortos revela a face sombria de um Estado que confunde força com legitimidade / Agência Brasil

Advogado e ex-ministro da Justiça do Brasil denuncia o uso da violência como espetáculo político e expõe a transformação da segurança pública em ferramenta de poder


Os números e os relatos das últimas horas falam por si: uma megaoperação policial que, segundo balanços oficiais, deixou cerca de 119 a 120 mortos — entre eles policiais — e que desencadeou uma onda de denúncias sobre execuções, torturas e abusos em favelas atingidas. Relatos de moradores, partidos e organizações de direitos humanos apontam para cenas de horror e para a possibilidade de que corpos tenham sido deixados à mercê da própria comunidade; por outro lado, o governo estadual classifica a ação como “sucesso” e vários governadores foram ao Rio prestar solidariedade ao governador Cláudio Castro logo após a ação.

É nesse cenário que surge o posicionamento de Tarso Genro — não como mera observação acadêmica, mas como denúncia política e ética. Em texto contundente (a seguir reproduzido nas suas palavras), Genro associa a operação a um cálculo político mais amplo: a tentativa de transformar a violência em espetáculo e em capital eleitoral, num momento em que as forças de extrema direita procuram reagir ao desgaste político nacional. Em suas palavras:

“Essa operação foi concebida para ser mais um elemento político do processo do ‘golpe continuado’, que ainda está em curso no país. A visita dos Governadores de extrema direita, solidarizando-se com o Governador Cláudio Castro, sem esperar sequer o resultado das investigações e/ou avaliações preliminares do MP, da Defensoria, das Perícias e das Corregedorias, comprova essa hipótese.”

O trecho de Genro, inserido no debate público, não é mera teoria conspiratória: há um fato concreto que a respalda — a pressa em transformar uma operação militarizada em patrimônio simbólico de um grupo político, antes mesmo que processos de investigação e de responsabilização fossem iniciados. Jornalistas e observadores registraram a presença de governadores no Rio nas horas seguintes à operação, em gestos que soaram mais como formação de um “consórcio de guerra” do que como procura de caminhos para a paz e para o direito.

Crítica à concepção militarizada de segurança pública

Tarso Genro não se limita a apontar a suspeita de motivação política: ele enfrenta o cerne ideológico da operação — a ideia de que favelas são “território inimigo”, passíveis de ocupação e de eliminação de pessoas consideradas “perdas colaterais”. Reproduzimos novamente um trecho incisivo do seu posicionamento:

“A operação pode ser, sim, um grande ‘erro técnico’, mas este erro técnico foi lastreado numa concepção dramaticamente errada: que as Comunidades das ‘favelas’ são território inimigo, que deve ser ocupado, neutralizado e atacado militarmente, e que as perdas colaterais ‘fazem parte’ de qualquer guerra e, por isso, devem ser desconsideradas.”

Ao afirmar isso, Genro toca numa questão que a literatura sobre segurança pública conhece bem: operações massivas e militarizadas raramente resolvem a raiz do problema — pobreza, ausência do Estado em serviços básicos, economia ilegal que se apropria de territórios onde o Estado não chega — e muitas vezes agravam a disputa pelo controle local, espalhando violência e deixando um rastro de trauma social. Organizações nacionais e internacionais vêm alertando há anos sobre os riscos desse modelo; o que vimos no Rio só confirma os piores cenários apontados por especialistas.

Erro de concepção e erro tático

Genro faz uma distinção importante entre “erro técnico” e erro de concepção. Mesmo que se aceitasse que, em abstracto, uma intervenção mais firme pudesse ser necessária, o que ocorreu no caso concreto foi, segundo ele, uma sucessão de equívocos: a falta de amparo legal, a incapacidade de atingir os reais comandos do crime naquela área, o desproporcional dano causado à população civil e até mesmo perdas entre policiais que atuavam a serviço do Estado. Repetimos suas palavras, agora para sublinhar esse ponto:

“Mesmo que se aceite que está correta a hipótese de uma ocupação militar, como parte de um projeto de Segurança Pública (o que é um erro de fundo) no caso concreto ela também foi totalmente errada: foi feita sem apoio na Lei, fracassou nos seus objetivos de prender ou neutralizar o real comando do crime organizado no espaço que atacou, gerou danos colaterais, na população do local atacado, muito superiores às perdas do crime organizado e provocou também a morte de Policiais dedicados, que estavam ali a serviço do estado.”

Os fatos apurados até agora — prisões, apreensões e relatos das cenas — são contraditórios e incompletos. O próprio questionamento sobre se a operação contou com mandados legalmente expedidos, e se havia integração institucional adequada (Ministério Público, Defensoria, perícias independentes), tem gerado pedidos formais de investigação e cobranças públicas. Genro identifica aí não só incompetência, mas um padrão político: transformar a violência em instrumento de desestabilização institucional.

A hipótese do “golpe continuado” e a construção do inimigo

Um dos pontos mais fortes — e mais controversos — do argumento de Tarso Genro é a leitura do episódio como peça de um xadrez político maior: a operação serviria para atiçar o ódio contra os pobres e reavivar forças que, segundo ele, levaram o país à beira do caos. Em suas palavras:

“A vontade política demonstrada pela operação é a de desestabilizar as instituições do Estado, atiçar o ódio contra os pobres para reavivar a tentativa de golpe, porque as forças de extrema direita, que levaram o país à beira do caos, estão em desvantagem para disputar as eleições em 26. A ‘visita’ dos Governadores foi para montar um Consórcio da Guerra, não um Consórcio da Paz.”

A acusação é dura e exige provas — e é por isso que Genro não pede apenas retórica, mas investigação séria e imediata: quem determinou regras de engajamento? Que ordens foram dadas? Houve instruções que priorizaram retórica eleitoral sobre a proteção da vida? As instituições democráticas devem responder com apurações públicas e independentes, e não com pactos de silêncio ou com encenações de “força” para a galeria. Diversos atores políticos e organismos de direitos humanos estão exigindo exatamente isso neste momento.

Armamentismo, hipócrisia e responsabilidade política

Outro eixo do diagnóstico de Genro atinge a política armamentista defendida por setores da direita nos últimos anos: flexibilizações, estímulo a associações e brechas legais que, segundo ele, ajudaram a alimentar o mercado ilegal de armas. A consequência óbvia é que armas que entram legalmente em circulação muitas vezes acabam nas mãos do crime organizado, ampliando a letalidade dos confrontos. Em sua crítica:

“Há um agravante: a hipocrisia armamentista. Muitos desses governadores defenderam, nos últimos anos, a liberação irrestrita de armas sob o manto da ‘liberdade individual’. Estimularam os CACs, abriram brechas legais, e fingiram não ver que grande parte dessas armas acabou nas mãos do crime. Alimentaram o monstro que agora dizem combater.”

Se há verdade nesta construção — e há evidências de que políticas de armar setores civis foram defendidas e implementadas por políticas estaduais e federais recentes — então a responsabilização não pode ficar restrita ao aparato policial: ela deve alcançar os formuladores de políticas públicas que criaram um ambiente permissivo para a circulação de armamento. Informações jornalísticas e relatórios já indicaram conexões preocupantes entre flexibilizações e aumento de apreensões de armas em operações.

O que Tarso Genro propõe — e o que a sociedade deve exigir

Tarso Genro não se limita a denunciar; ele aponta caminhos implícitos no próprio diagnóstico: retomar políticas públicas que incluam presença do Estado em serviços essenciais, revisar a doutrina de segurança pública que trata territórios como teatros de guerra, garantir investigações independentes e transparentes, e responsabilizar politicamente aqueles que transformam a violência em espetáculo.

Ao final de seu trecho, Genro sintetiza a sua indignação com uma imagem forte — a dos mortos e das covas:

“Falam em moral, mas o que praticam é a imoralidade institucionalizada. Falam em segurança, mas entregam o caos. Falam em combate ao crime, mas perpetuam a violência. E, no fim, o que sobra são os mortos – os da favela e os da farda -, todos vítimas de uma política sem alma e de um governo sem compaixão.”

Essas palavras exigem resposta — e não apenas retórica: exigem investigação, responsabilização, reformas e políticas que tratem a segurança pública como parte de um projeto de cidadania e inclusão, e não como pretexto para experimentos de violência estatal.

Um teste para as instituições

Se há algo que este episódio revela, é que o Estado brasileiro, em suas múltiplas instâncias, enfrenta um teste — moral, jurídico e político. A maneira como se conduzirão as investigações, como serão protegidas as famílias das vítimas, como se apurarão possíveis crimes e abusos, e como se repensarão as políticas de segurança, será o indicador mais claro do que somos capazes de preservar: a democracia e a dignidade humana, ou a normalização da barbárie.

Tarso Genro, com sua trajetória pública e com o texto que aqui reproduzimos, coloca uma exigência elementar: que o país não transforme em espetáculo eleitoral a morte de brasileiros e brasileiras. E que, acima de tudo, se exigam das autoridades respostas à altura das vidas que foram ceifadas — respostas institucionais, jurídicas e políticas.

Via X

Tarso Genro é advogado, ex-prefeito de Porto Alegre, ex-ministro no governo Lula e ex-governador do Rio Grande do Sul — não fala apenas da boca para fora: sua trajetória pública e sua biografia dão peso a uma crítica que, hoje, volta-se diretamente contra o comando do Estado no Rio de Janeiro. Pai de Luciana e Vanessa, avô de três netos e casado com Sandra Bitencourt, Genro juntou experiência administrativa e sensibilidade política para oferecer, na crise mais grave vivida pelo estado nas últimas décadas, um diagnóstico e um alerta que não podem ser relegados ao silêncio.

Com informações de Brasil 247*

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