Diplomacia à mercê de um único homem

Tarifas seletivas, sanções inesperadas e gestos de bajulação definem a política externa americana sob a lógica do “América em primeiro” / Reprodução

Enquanto se proclama pacificador, Trump alterna entre negociações de prestígio e ações militares arbitrárias, deixando o mundo à mercê de sua vontade


Um ano se passou desde a reeleição de Donald Trump, e o panorama da diplomacia global está irreconhecível. Washington, antes sinônimo de previsibilidade — mesmo a tensa previsibilidade da Guerra Fria ou da chamada “Guerra ao Terror” —, hoje se transforma em um território dominado pelo capricho de um único homem. O personalismo se tornou o eixo central da política externa americana, com consequências que reverberam de aliados históricos a rivais declarados.

Como descreveu um veterano da Casa Branca: “Um ano após sua reeleição, a diplomacia está sendo conduzida pelos caprichos pessoais do presidente a um ponto sem precedentes na era moderna.” Para o mundo, a lição é clara e brutal: a única política externa que importa é aquela que alimenta o ego do ocupante do Salão Oval.

Bajulação global

A lógica do “agradar para sobreviver” virou regra internacional. Esta semana, a primeira-ministra do Japão, Sanae Takaichi, chegou a Washington carregando uma declaração inusitada: indicou Donald Trump para o Prêmio Nobel da Paz. O gesto não é isolado; governos do Camboja, Paquistão e Israel também se empenham em lisonjear o presidente na esperança de evitar represálias.

No Reino Unido, o primeiro-ministro Sir Keir Starmer usou seu encontro inicial com Trump para anunciar um convite para uma segunda visita de Estado. O gesto foi exaltado como “verdadeiramente histórico” e “sem precedentes”, evidenciando o clima de submissão que agora permeia as relações transatlânticas. Fontes diplomáticas, sob anonimato, descrevem essa bajulação como “indigna”, mas para aliados e parceiros, tornou-se quase uma obrigação dolorosa.

E aqueles que não se dobram? A punição é imediata e severa. A relação entre Estados Unidos e Índia, antes em ascensão estratégica, despencou após Narendra Modi recusar-se a creditar Trump publicamente pelo cessar-fogo entre Índia e Paquistão. A resposta americana foi dura: tarifas de 50% sobre produtos indianos. O Canadá, outro aliado histórico, também sentiu a força do ego presidencial: uma crítica de Ontário às tarifas desencadeou uma retaliação tarifária, mostrando que a soberania nacional virou detalhe irrelevante diante da fúria de Trump.

O método do caos

Apesar do aparente caos, algumas constantes surgem com clareza. Trump é obsessivo com tarifas alfandegárias, convencido de que elas enriquecerão e fortalecerão os Estados Unidos. Ele acredita que seus aliados historicamente exploraram o país, e essa narrativa vitimista justifica a política predatória do “América Primeiro”.

O velho discurso sobre valores americanos e liberdade — caro a presidentes anteriores, mesmo que hipócrita — foi abandonado. Agora, Trump se concentra exclusivamente em força e vitórias, entendidas como investimentos bilionários, acordos comerciais e tratados de paz que ele possa reivindicar pessoalmente.

Ironia ou ambição? Fontes internas sugerem que o desejo de ser reconhecido como pacificador pode refletir um horror genuíno à guerra. Mas outros percebem na busca pelo Prêmio Nobel da Paz uma vontade desesperada de igualar Barack Obama em prestígio internacional. O próprio presidente chegou a ponderar: “Estou ouvindo que não estou indo bem. Estou realmente na base da pirâmide.”

Enquanto a Casa Branca destaca sua atuação em cessar-fogos em Gaza e acordos entre Tailândia e Camboja, a máscara de pacificador rapidamente cai. Trump autorizou ataques aéreos contra o Irã, reivindicando o mérito das ações, e, simultaneamente, envia o porta-aviões USS Gerald R. Ford para o Caribe, ameaçando uma possível intervenção na Venezuela. O imperialismo clássico volta às Américas, sem disfarces.

Tarifas é uma arma de pressão

No Sul Global, as tarifas são o dia a dia da opressão trumpista. Após o chamado “dia da libertação” em 2 de abril, com aumentos globais, a política tarifária se tornou seletiva e opaca: Reino Unido (10%), Japão e União Europeia (15%), Filipinas (19%), África do Sul (30%). Para a China, ameaçada com tarifas de até 100%, o encontro pessoal entre Trump e Xi em Seul resultou em uma redução média para 45% — um “desconto” decidido no aperto de mãos.

A busca pessoal de Trump por um “grande acordo” com Xi Jinping desorganizou a única área com algum consenso em Washington: a contenção da China como grande potência emergente. As mesmas tarifas impostas a aliados na Ásia — Japão, Índia, Taiwan e Coreia do Sul — contrariam diretamente os esforços de coalizão contra Pequim. O resultado é um desastre geopolítico: países temendo a instabilidade americana buscam agora aproximação com a China.

Analistas sugerem que Trump não possui uma doutrina coerente. No entanto, dentro de sua administração, três grupos disputam influência:

  • Os Primacistas: Imperialistas tradicionais que defendem o papel global dos EUA e intervencionismo em todos os continentes, liderados por Marco Rubio e Lindsey Graham.
  • Os Moderadores (Restrainers): Isolacionistas céticos sobre aliados, representados por JD Vance, buscando evitar guerras não lucrativas.
  • Os Priorizadores (“Ásia Primeiro”): Propõem abandonar frentes secundárias e concentrar esforços na contenção da China, com figuras como Elbridge Colby.

Enquanto essas tribos brigam em Washington, o mundo real — de Gaza ao Caribe, das fábricas indianas às Filipinas — arca com as consequências. Um ano após sua reeleição, a “Doutrina Trump” é simplesmente a doutrina do caos, e sua máxima é inequívoca: “não confie na América.”

Leia também: Tarifas e vaidade dominam Washington

Um ano após a reeleição de Donald Trump, a política externa americana se transformou em um teatro de improvisos, onde as decisões estratégicas dependem mais do humor e dos caprichos pessoais do presidente do que de qualquer análise racional de poder global. Como resumiu Jeremy Shapiro, coautor de estudo sobre a administração Trump: “O presidente não se importa com nenhuma dessas escolas de pensamento. Ele é movido por seus próprios interesses pessoais e psicológicos.”

O resultado é um ambiente em que três facções da extrema-direita americana — isolacionistas, primacistas e priorizadores — disputam desesperadamente a atenção presidencial, alinhando suas ambições à sede do presidente por vitórias de curto prazo e publicidade imediata. Cada grupo experimentou tanto triunfos quanto humilhações ao longo do primeiro ano do segundo mandato.

O grupo moderador, liderado pelo vice-presidente JD Vance, buscava uma política pragmática e cínica, incluindo a reaproximação com a Rússia de Vladimir Putin e a redução da ajuda americana à Ucrânia. Em fevereiro, Vance desempenhou papel central no episódio histórico do corte total de ajuda à Ucrânia, forçando os europeus a cobrir o déficit financeiro. Também apoiou a pressão sobre a OTAN para que os países membros aumentassem seus gastos de defesa.

No entanto, a grande aposta de reaproximação com Putin falhou. A cúpula no Alasca, em agosto, decepcionou Trump, que passou a demonstrar uma postura mais amistosa com Zelensky e até endureceu sanções contra Moscou. No Oriente Médio, a decisão de bombardear o Irã provocou cisão interna, com figuras influentes do MAGA, como Tucker Carlson e Marjorie Taylor Greene, criticando publicamente a medida. Vance, em um chat interno, não escondeu a frustração: “Acho que estamos cometendo um erro. Detesto ter que socorrer a Europa novamente.”

Para os primacistas, como Marco Rubio e Lindsey Graham, a ação contra o Irã foi celebrada, mas a decisão de Trump de encerrar a campanha abruptamente decepcionou a facção. Agora, Rubio foca na Venezuela, promovendo uma política agressiva contra Maduro, alinhando a questão a preocupações domésticas de Trump, como drogas e imigração, na esperança de conquistar mais uma vitória “televisionável”.

Apesar de divergências internas, esta facção conseguiu manter Trump na OTAN, garantindo que os aliados europeus aumentassem gastos, um compromisso que equilibra as tensões entre isolacionistas e primacistas.

O grupo “Ásia Primeiro”, liderado por Elbridge Colby, teve seu desempenho mais frágil. O objetivo de reduzir o foco europeu e do Oriente Médio para conter a China enfrenta resistência. Rumores indicam que o Pentágono está revisando sua estratégia, priorizando o hemisfério ocidental, o que enfraquece a visão de Colby. Qualquer acordo pessoal entre Trump e Xi que prejudique Taiwan representaria um golpe final à influência deste grupo e aos primacistas.

Imperialismo pessoal

O próprio Trump frequentemente ignora todas as tribos e seus objetivos estratégicos. A tentativa de anexar a Groenlândia ou sugerir que o Canadá se tornasse o 51º estado revela um impulso imperialista pessoal, caótico e imprevisível. Até os primacistas de Rubio consideraram essas ideias extremas, e atualmente esforços discretos buscam minimizar tais iniciativas. No entanto, a combinação de insultos a aliados, tarifas arbitrárias e incentivo à extrema-direita europeia terá consequências de longo prazo.

A máquina de Trump garante “vitórias” visíveis — cessar-fogos, OTAN fortalecida e acordos comerciais favoráveis —, mas Shapiro alerta: “Trump está trocando vitórias de curto prazo por problemas de longo prazo. Ele está desperdiçando 80 anos de capital diplomático americano.”

Esse capital foi construído durante décadas, sustentando o sistema de comércio global e garantindo segurança a aliados estratégicos, consolidando a influência americana no Japão, Reino Unido, Canadá e além. Hoje, a disposição de Trump em usar essa influência de forma arbitrária envia um recado devastador: confiar na América tornou-se arriscado.

A reação de países fora da órbita direta dos EUA é ainda mais assertiva. No Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou com firmeza as tentativas de Washington de interferir em processos internos envolvendo Bolsonaro. Na Índia, Modi tem ignorado chamadas de Trump após a disputa tarifária.

Como observa um artigo recente da Foreign Affairs, os EUA estão alienando aliados indecisos, enquanto blocos como os BRICS ganham coesão anti-americana. Trump demonstra o poder residual dos EUA, mas simultaneamente pavimenta um futuro em que o país terá menor capacidade de influência global.

Ao fim do primeiro ano do segundo mandato, a “Doutrina Trump” mostra-se cada vez mais clara: o mundo vive sob o caos do personalismo americano, onde a máxima que governa a política externa é simples e implacável — “não confie na América.”

Com informações de Financial Times*

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