A ausência dos líderes europeus em Santa Marta expõe o peso da pressão americana e o colapso simbólico da cooperação entre continentes
O que aconteceu em Santa Marta, Colômbia, vai muito além de uma simples crise diplomática. O esvaziamento da Cúpula entre a União Europeia (UE) e a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) é o retrato fiel de um mundo em fratura — e, mais do que isso, de uma Europa que, submissa ao império de Washington, abandona qualquer pretensão de autonomia política. Quando líderes europeus recuam diante da possibilidade de desagradar Donald Trump, o recado é claro: a velha potência continental ajoelha-se mais uma vez diante do poder norte-americano.
Mas para a América Latina, o episódio deve servir como um alerta e, sobretudo, um ponto de inflexão. A região precisa compreender que soberania não se negocia — e que depender do aval de Washington ou de Bruxelas é condenar-se à eterna tutela de interesses alheios.
A cúpula que virou símbolo da submissão
O encontro UE-CELAC, planejado para os dias 9 e 10 de novembro em Santa Marta, tinha tudo para ser um marco de cooperação entre dois continentes historicamente entrelaçados. Mais de cinquenta países, representando 21% do PIB mundial, deveriam debater comércio, desenvolvimento sustentável e segurança regional. No entanto, antes mesmo de começar, o evento desmoronou.
A ausência dos principais líderes europeus — como o chanceler alemão Friedrich Merz e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen — não é um mero detalhe logístico. É um ato político de omissão calculada. Fontes diplomáticas confirmam que a Casa Branca, sob o comando beligerante de Donald Trump, pressionou discretamente contra a realização do encontro, incomodada com a presença de governos latino-americanos considerados “rebeldes” por Washington.
Trump tem tratado a América Latina como quintal estratégico e zona de influência exclusiva. Ao sancionar o presidente colombiano Gustavo Petro e intensificar ameaças contra a Venezuela, o mandatário norte-americano reeditou o velho manual de coerção imperial: punir, intimidar e dividir. A Europa, que poderia ter servido como contrapeso diplomático, preferiu calar — e, pior, ausentar-se.
O silêncio cúmplice da Europa
O comunicado frio e evasivo do porta-voz de Merz, alegando “baixa participação” para justificar sua ausência, é quase cômico se não fosse trágico. Afinal, a ausência dos líderes europeus é justamente a razão do fracasso do encontro. Ursula von der Leyen, por sua vez, optou pelo silêncio absoluto. Nenhum comentário, nenhuma tentativa de diplomacia, nenhuma sinalização de solidariedade com os parceiros latino-americanos.
A UE, que tanto se apresenta como defensora do multilateralismo, mostrou-se incapaz de sustentar um encontro que contrariasse a Casa Branca. Santa Marta expôs, com nitidez brutal, o que há muito se suspeitava: a Europa, outrora protagonista de sua própria história, hoje atua como extensão política dos Estados Unidos.
E o mais grave é que essa subserviência tem custo. Ao renunciar a um diálogo direto com a América Latina, Bruxelas abre mão de uma parceria que poderia equilibrar o cenário global e reduzir a dependência de Washington. Em vez disso, prefere correr atrás de um acordo comercial com o Mercosul, já manchado pela desconfiança e pelo ressentimento que o recente boicote provocou.
A América Latina deve olhar para si
Para a América Latina, o episódio é pedagógico. Ele mostra que esperar coerência ou solidariedade das potências ocidentais é um erro repetido demais. Quando a região busca autonomia — seja através da integração econômica, da cooperação energética ou da soberania ambiental — logo se torna alvo de sanções, ameaças e campanhas de desestabilização.
A história é conhecida: cada vez que um país latino-americano tenta romper com o modelo imposto de dependência, Washington reage com hostilidade. A diferença, agora, é que a Europa não disfarça mais seu papel de coadjuvante nessa estratégia. O boicote à cúpula é, em última instância, um gesto de alinhamento automático com a política externa agressiva de Trump.
Mas há um dado novo — e esperançoso. A América Latina, hoje, tem mais maturidade institucional e consciência de sua força coletiva. O fracasso em Santa Marta deve impulsionar uma resposta política firme: fortalecer a CELAC, aprofundar o comércio intrarregional e consolidar um eixo de cooperação Sul-Sul, menos vulnerável à chantagem de Washington.
O preço da omissão
Enquanto a Europa se rende à lógica da obediência, o mundo multipolar avança. China, Índia, Rússia e países africanos reforçam laços com a América Latina sem exigir submissão ideológica. A UE, por sua vez, parece preferir o papel de apêndice do poder norte-americano, sacrificando a própria credibilidade diplomática.
Em última análise, o boicote europeu à cúpula não enfraquece apenas a América Latina — ele desmoraliza a própria União Europeia. Um bloco que não tem coragem de dialogar com parceiros autônomos dificilmente pode pretender liderar qualquer ordem internacional justa.
A América Latina precisa tomar nota: só há um caminho possível — o da soberania plena. Isso significa romper com a lógica da dependência, investir em integração regional e defender, com voz própria, seus interesses no cenário global.
Conclusão: um chamado à dignidade
Santa Marta não foi apenas o palco de um fracasso diplomático. Foi o espelho de um sistema internacional em colapso moral. De um lado, potências que se ajoelham diante do poderio de Trump; de outro, uma América Latina desafiada a erguer-se com dignidade e autoconfiança.
Se o século XX foi o da submissão e das intervenções, o século XXI precisa ser o da emancipação latino-americana. Nenhuma soberania se constrói pedindo licença — e nenhum futuro se escreve sob as ordens de Washington.
Santa Marta, portanto, não deve ser lembrada como o símbolo da desistência europeia, mas como o ponto de partida de uma nova consciência regional: a de que a América Latina só será livre quando deixar de esperar a aprovação dos poderosos e começar a agir por si mesma.