Quando o progresso vem cheirando a gás

O apetite das Big Techs por eletricidade torna-se o novo motor do imperialismo energético travestido de modernidade / Reprodução

Enquanto o Sul Global luta por soberania, o Norte vende soluções sujas com a mesma arrogância colonial de séculos atrás


Enquanto o mundo debate a transição energética e o Sul Global luta para proteger suas economias da espoliação histórica, os Estados Unidos, sob a égide de políticas trumpistas que ressuscitam o mais cru imperialismo, nos oferecem mais um capítulo de sua hipocrisia energética. O caso da First American Nuclear Co., em Indiana, é um microcosmo perfeito do que se tornou o projeto de poder norte-americano para o século XXI: uma fachada futurista sustentada por estruturas arcaicas, poluentes e profundamente injustas.

A startup promete um futuro de energia nuclear “limpa”, com reatores que magicamente reciclam seus próprios resíduos tóxicos. Soa bem, soa progressista. No entanto, a letra miúda – aquela que sempre escondem dos olhos do mundo – revela a verdadeira essência. Para alimentar a fera insaciável da Inteligência Artificial, a solução imediata não é a inovação, mas o velho e sujo gás natural.

O plano é começar a poluir em 2028 para, quiçá, vender o tal sonho atômico em 2032. É o capitalismo de desastre aplicado à crise climática: criar um problema urgente (a demanda energética explosiva da IA) para justificar a ampliação da infraestrutura de combustíveis fósseis, enquanto se posterga a solução verdadeira para um amanhã incerto.

Esta não é uma mera estratégia de negócios. É uma declaração política. É a materialização da doutrina Trump de “America First”, que na prática significa “America Burns the World First”. Enquanto nos pressionam a abrir nossas economias e nossos recursos naturais para seus interesses, seu próprio desenvolvimento é construído sobre a queima acelerada de combustíveis fósseis, aprofundando a crise climática que mais afetará a América Latina, a África e a Ásia. A fome de energia dos data centers, impulsionada por corporações bilionárias, é tratada como uma emergência nacional que justifica tudo, até mesmo regredir na matriz energética.

O investimento de US$ 4,2 bilhões nesta aposta híbrida – gás hoje, uma química nuclear duvidosa amanhã – expõe a falácia do “capitalismo inovador” norte-americano. A tecnologia milagrosa que prometem, o reator de metal líquido, não é uma novidade saída dos laboratórios de Stanford ou do MIT. É uma tecnologia “já utilizada em submarinos russos há anos”. A ironia é grossa: em plena retórica belicista e antirrussa, o suposto futuro energético dos EUA depende de adaptar uma tecnologia do seu inimigo geopolítico declarado. Isso não é inovação; é desespero travestido de genialidade.

E o que significa a promessa de que “os resíduos, na verdade, fornecem energia”, feita pelo presidente da empresa, Bill Stokes? Soa perigosamente como a velha lógica colonial de que o veneno pode ser o remédio. É o mesmo pensamento mágico que, por décadas, tentou vender para a América Latina e outras regiões modelos extrativistas como “oportunidades de desenvolvimento”, deixando para trás apenas passivos ambientais e sociais. Agora, querem aplicar essa lógica ao seu próprio quintal, e o mundo deve assistir passivamente.

Este caso em Indiana é um alerta para nossa América Latina. Ele nos mostra que, sob o comando de figuras como Trump, os EUA não têm um projeto viável e sustentável nem para si mesmos. Seu modelo é predatório, de curto prazo e baseado em salvar os lucros das Big Techs à custa do planeta. Enquanto isso, nossa região, tão rica em sol, vento, água e biodiversidade, deve fortalecer com urgência sua própria soberania energética.

Não podemos nos curvar a um parceiro que, em sua sede descontrolada, nos oferece como futuro a poluição de hoje e as quimeras de amanhã. A verdadeira energia limpa, democratizada e soberana não virá dos reatores de submarinos adaptados em Indiana, nem dos poços de gás natural abertos às pressas. Virá de nossa capacidade de união e de investir em nossas próprias soluções, livres da dependência de um império que, para saciar sua própria fome, está disposto a queimar o presente e hipotecar o futuro de todos.

Com informações de Bloomberg*

Rhyan de Meira: Rhyan de Meira é jornalista, escreve sobre política, economia, é apaixonado por samba e faz a cobertura do carnaval carioca. Instagram: @rhyandemeira
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