O avanço das montadoras chinesas expõe o colapso de um modelo europeu que sacrificou fábricas, empregos e soberania em nome do lucro financeiro
Por mais que Carlos Tavares, ex-presidente da Stellantis, tente mascarar seu alerta com tons de neutralidade técnica, suas palavras revelam algo mais profundo e incômodo: o desmoronamento de um modelo econômico europeu que, há décadas, escolheu servir ao capital financeiro em vez de proteger sua base produtiva e social. A entrada triunfal das montadoras chinesas na Europa — que ele descreve como inevitável, quase natural — é, na verdade, o sintoma final da rendição do capitalismo europeu às suas próprias contradições.
Tavares afirma que as empresas automotivas da China “salvarão” fábricas e empregos europeus, enquanto “devoram” suas concorrentes locais. O termo “salvar”, no entanto, é usado com ironia involuntária: não se trata de um ato de generosidade, mas de um movimento geopolítico e econômico que nasce do vácuo deixado por políticas neoliberais que desmontaram a indústria europeia em nome da “eficiência do mercado”.
A China não criou esse vácuo — apenas o está ocupando. Foram as elites empresariais e políticas da própria Europa que, nos últimos 30 anos, apostaram em desregulamentação, austeridade e terceirização para sustentar lucros de curto prazo. Agora, diante da crise climática e da corrida por veículos elétricos, descobrem que não têm mais nem a tecnologia de ponta nem a infraestrutura industrial para competir com o modelo estatal coordenado de Pequim.
Enquanto as montadoras chinesas como BYD e Geely avançam com carros elétricos acessíveis e modernos, a Europa se vê atolada em contradições. Regulamenta as emissões — com razão —, mas sem oferecer às empresas o apoio necessário para uma transição justa. A indústria automotiva europeia ficou presa entre o lobby do petróleo, a miopia neoliberal e a obsessão por dividendos trimestrais. O resultado? Fábricas fechando, trabalhadores demitidos e um continente que terceiriza até o seu próprio futuro industrial.
Carlos Tavares conhece bem esse jogo. Como CEO da Stellantis, foi símbolo da era dos “megafusões” — operações financeiras que prometiam competitividade global, mas que na prática resultaram em cortes de empregos, precarização e desindustrialização. Agora, ironicamente, ele se apresenta como analista lúcido de um problema que ajudou a criar. Quando afirma que as empresas chinesas “querem nos engolir”, parece esquecer que foi ele próprio quem abriu as portas, firmando acordos com grupos como a Leapmotor e defendendo uma globalização que sempre beneficiou acionistas e executivos — como ele —, não trabalhadores.
Não é coincidência que Tavares tenha deixado a Stellantis em meio a um conflito com o conselho, após embolsar €36,5 milhões em 2023 — um número que provocou indignação até entre acionistas. Enquanto isso, milhares de trabalhadores europeus enfrentam demissões e congelamento de salários. A desigualdade estrutural do setor automotivo europeu é a outra face da moeda que financia os “salvadores” chineses.
Mas não se trata apenas de economia. Há um componente político evidente: a guerra comercial global e a crescente dependência tecnológica da Europa expõem a fragilidade do projeto europeu em tempos de crise. Enquanto a União Europeia discute tarifas e metas de emissões, Pequim planeja estrategicamente sua expansão — combinando política industrial, investimento estatal e visão de longo prazo.
A ironia é que Tavares chama de “estupidez” as políticas climáticas da UE, quando o verdadeiro erro foi justamente o oposto: permitir que o setor privado ditasse as regras da transição ecológica. Se a eletrificação tivesse sido conduzida com base em planejamento público, investimento estatal e proteção aos trabalhadores — e não na lógica do lucro imediato —, talvez a Europa não estivesse hoje à mercê da concorrência asiática.
A previsão de Tavares de que restarão apenas “cinco ou seis montadoras” globais é o retrato final de um capitalismo em colapso. Um mundo dominado por meia dúzia de corporações, em que a concentração de poder e riqueza destrói a diversidade produtiva e a autonomia nacional. Nesse cenário, o trabalhador europeu será reduzido a espectador de uma disputa entre conglomerados transnacionais — chineses, japoneses, americanos — sem qualquer voz sobre o rumo da indústria que ele mesmo construiu.
Diante disso, é preciso resgatar a verdadeira ideia de “salvação”: não a que vem de fora, na forma de investimentos predatórios, mas a que nasce da reconstrução de um projeto industrial soberano, sustentável e socialmente justo. A Europa precisa escolher entre continuar vendendo seu futuro em nome de lucros de curto prazo ou recuperar a noção de que a indústria é, antes de tudo, um bem público — motor de emprego, conhecimento e dignidade.
A China apenas cumpre o papel que o capitalismo europeu abdicou: o de planejar o desenvolvimento com base no interesse coletivo. Se há uma lição neste alerta de Carlos Tavares, é que a globalização sem Estado e sem justiça social leva exatamente a este ponto: o momento em que os “salvadores” aparecem — não para ajudar, mas para colher os frutos do desastre.
E o desastre, convenhamos, foi inteiramente fabricado em Bruxelas, Frankfurt e Paris — não em Pequim.