Interesses privados e personalismos corroem qualquer chance de entendimento real entre as maiores potências do mundo
A relação entre Estados Unidos e China não é apenas uma disputa econômica ou política; é um espelho das contradições de um sistema global centrado no poder, no lucro e na desconfiança. O atual estado das negociações bilaterais, marcado por manipulação, obstrução e generalizações exageradas, mostra que as duas maiores potências do planeta estão presas em um ciclo tóxico — incapazes de construir canais confiáveis de comunicação, mesmo após a cúpula multilateral na Coreia do Sul.
Essa relação disfuncional não é fruto apenas de diferenças culturais ou ideológicas. Ela decorre, em grande medida, de uma lógica de poder que privilegia interesses privados e curtos prazos políticos sobre soluções estruturais e coletivas. A falta de intermediários confiáveis, o desprezo por diplomatas experientes e o predomínio de conselheiros lealistas ou executivos corporativos transformam o diálogo em um “telefone sem fio” internacional: cada mensagem é distorcida, cada intenção mal interpretada, e os riscos globais aumentam.
Durante o primeiro mandato de Trump, havia, paradoxalmente, alguma eficácia nesse caos. O chamado “canal Kushner”, conduzido pelo genro do presidente, permitiu avanços que o aparato diplomático tradicional não conseguiria. O acordo comercial de “fase um” de 2020 é um exemplo disso. Hoje, porém, essa porta dos fundos está trancada. Não existem intermediários com influência suficiente para traduzir interesses complexos em acordos funcionais. A negociação oficial, conduzida por Scott Bessent e He Lifeng, esbarra na inexperiência específica em relações bilaterais e na falta de entrosamento profissional que é essencial para lidar com sistemas políticos e econômicos tão diferentes.
A busca por substitutos para Kushner revela ainda mais os riscos desse modelo de geopolítica centrado em indivíduos poderosos e magnatas corporativos. Elon Musk, Jensen Huang (Nvidia) e Stephen Schwarzman (Blackstone) foram cogitados como canais, mas nenhum tem proximidade suficiente com ambos os lados para construir confiança duradoura. A política interna agrava a situação: nos EUA, qualquer defesa de aproximação com a China é denunciada como “traidora”, enquanto na China a concentração de poder nas mãos de Xi torna os diplomatas paranóicos com a possibilidade de parecerem fracos. A demissão de figuras influentes em Pequim e a fragilidade da diplomacia americana — fruto de cortes no Conselho de Segurança Nacional e da escassez de especialistas em China — reforçam a disfunção.
O caso Nvidia exemplifica como a lógica do lucro e da competição tecnológica pode minar o diálogo político. Jensen Huang, CEO da Nvidia, tentou atuar como intermediário, mas enfrentou reações contraditórias: Pequim suspendeu compras de chips de IA, enquanto nos EUA Steve Bannon clamava por sua prisão. A situação ilustra como interesses corporativos e nacionalistas se entrelaçam, tornando quase impossível um consenso diplomático racional e sustentável.
O choque de estilos entre Trump e Xi revela a dimensão estrutural do problema. Trump aposta em “magnetismo pessoal” e negociação direta, enquanto Xi exige procedimentos claros e agendas definidas. Essa incompatibilidade não é apenas uma questão de estilo, mas de cultura institucional e prioridades de Estado. Sem canais confiáveis e sem diplomatas de carreira experientes, qualquer progresso é limitado a medidas cosméticas — como a recente reestruturação americana do TikTok — e corre o risco de se desfazer rapidamente.
A leitura crítica desse cenário aponta para um problema maior: a geopolítica contemporânea é conduzida por interesses concentrados, por personalidades e corporações, e não pelas necessidades coletivas do planeta. As decisões tomadas nesse ambiente afetam bilhões de pessoas, mas os riscos e custos são externalizados, enquanto os lucros e privilégios permanecem restritos a uma elite global.
Para além de estratégias comerciais e rivalidades bilaterais, o mundo enfrenta uma lição clara: sem canais de comunicação confiáveis, sem diplomacia baseada em conhecimento e experiência, sem atenção às consequências sociais e econômicas globais, os impasses continuarão, e o ciclo tóxico entre potências persistirá. A geopolítica deixada à mercê de interesses privados e personalismos é um jogo perigoso, que não apenas ameaça acordos comerciais, mas também a estabilidade global, o comércio justo e a paz.
O telefone sem fio da geopolítica mostra, portanto, a fragilidade de um sistema que prioriza lucros e poder concentrado em detrimento do bem comum. Enquanto isso não mudar, qualquer cúpula ou negociação será apenas mais um capítulo de um impasse estrutural, em que a humanidade, mais uma vez, paga o preço da incompetência e da ganância das elites.