Quando a guerra falha, a legalização se impõe

O preço da guerra às drogas é sangue demais / Reprodução

Dados globais mostram 600 mil mortes anuais por drogas ilegais; a revista The Economist defende que só a regulamentação traria segurança ao consumo


A guerra às drogas, travada há mais de meio século, produziu um saldo inegável: milhões de mortos, prisões superlotadas e nenhuma vitória concreta. Agora, de forma inesperada, até um dos bastiões do pensamento liberal de mercado — a revista The Economist — decidiu reconhecer o óbvio. Em um editorial que causou choque nas elites políticas ocidentais, a publicação defende abertamente a legalização e regulamentação da cocaína. Sim, a mesma revista que durante décadas foi voz da ortodoxia econômica global, agora admite que o proibicionismo é uma falência total — moral, social e econômica.

Sob o título provocador “A força bruta não é páreo para os traficantes de drogas de alta tecnologia de hoje”, o texto desmonta o mito da repressão como solução. A The Economist aponta diretamente para o epicentro da hipocrisia global: a política militarizada dos Estados Unidos sob Donald Trump. O governo americano, segundo a revista, apostou em “força militar e violência sem precedentes”, acreditando que bombas, prisões e ameaças poderiam conter um mercado que se reinventa a cada dia. Mas os resultados são trágicos: a indústria do narcotráfico tornou-se “mais inovadora e nebulosa do que nunca”, enquanto as mortes por overdose e o poder das facções crescem em escala mundial.

Os números são brutais e reveladores. Cerca de 600 mil pessoas morrem por ano em decorrência de drogas ilegais — muitas delas vítimas não do vício, mas da proibição. São corpos que se acumulam nas estatísticas globais enquanto governos insistem em medidas espetaculosas, como “bombardear barcos no Caribe”, prática que a própria revista classifica como “quase certamente ilegal e improvável que faça muita diferença”. A repressão, como sempre, mata pobres, criminaliza minorias e protege os grandes beneficiários da engrenagem: bancos, armas e indústrias que prosperam na sombra da ilegalidade.

A proposta da The Economist soa radical apenas porque o senso comum ainda é moldado por décadas de medo e moralismo. A revista defende, com clareza, que “a maneira mais eficaz de reduzir as mortes, a violência e a corrupção seria legalizar e regulamentar a produção e o consumo de cocaína”. A lógica é simples e devastadora: se a cocaína fosse legal e controlada, deixaria de ser fonte de lucro para os criminosos e de morte para os consumidores. O “preço premium” que alimenta a violência desapareceria, a pureza da droga seria garantida e o sistema penal poderia se concentrar em crimes reais — não em punir quem consome.

A ironia é que essa defesa não parte de um manifesto socialista, mas do coração do liberalismo econômico. A The Economist reconhece que a proibição é irracional até sob a ótica do mercado: cria escassez artificial, eleva preços e estimula uma economia paralela que não paga impostos nem respeita vidas. A guerra às drogas é, em última instância, um subsídio estatal à criminalidade. E, como todo projeto autoritário, serve também a outro propósito: disciplinar corpos e territórios, controlar periferias, destruir comunidades negras e indígenas — enquanto os verdadeiros donos do lucro continuam intocados.

O debate já ferve no Reino Unido. A intervenção do prefeito de Londres, Sadiq Khan, reacendeu a discussão ao defender a descriminalização de pequenas quantidades. O gesto foi simbólico, mas suficiente para provocar histeria política. A cocaína, segundo dados oficiais, é a segunda droga mais consumida do país, atrás apenas da cannabis. Ignorar isso é hipocrisia — mas admitir a realidade ainda é tabu. O chefe da Polícia Metropolitana, Sir Mark Rowley, rejeitou imediatamente a ideia. Já o líder do Partido Verde, Zack Polanski, foi mais longe, defendendo abertamente a legalização de todas as drogas, inclusive heroína e crack. Uma posição ousada, mas coerente com a defesa da vida e da redução de danos.

Apesar de todo o debate, a barreira da opinião pública permanece sólida — moldada por décadas de propaganda moralista. Pesquisas da YouGov mostram que a maioria dos britânicos teme a descriminalização, imaginando um “aumento no consumo” e “mais crimes”. É a mesma lógica punitivista que sustenta prisões lotadas e funerais precoces nas periferias do mundo. Enquanto isso, os verdadeiros dados mostram que onde houve políticas de redução de danos e regulação, o consumo descontrolado caiu, e a mortalidade também.

O que The Economist faz, ainda que timidamente, é reconhecer o que movimentos sociais, cientistas e ativistas vêm dizendo há décadas: a proibição não combate as drogas — combate pessoas. E as vítimas dessa guerra não estão nas salas de Wall Street, mas nos becos das favelas, nas fronteiras latino-americanas, nos bairros operários. A guerra às drogas é, acima de tudo, uma guerra contra os pobres.

Quando até um ícone do capitalismo global defende a regulação de uma substância demonizada como a cocaína, o mundo deveria prestar atenção. O editorial não é um gesto de compaixão, mas de pragmatismo — e, ainda assim, carrega um valor simbólico imenso. Ele escancara o colapso de uma ideologia que preferiu a punição à prevenção, o castigo à educação, a força bruta à razão.

A esquerda, que há décadas denuncia esse modelo genocida travestido de política pública, deve se apropriar desse momento. Legalizar não é liberalizar o consumo — é recuperar o controle social sobre o que hoje pertence ao crime. É garantir saúde, informação, transparência e segurança. É, enfim, romper com o moralismo que transforma dependentes em inimigos e governos em algozes.

A The Economist conclui que “sem a legalização, a luta contra as drogas ilícitas é árdua”. É mais do que árdua — é inútil, injusta e desumana. Legalizar é, antes de tudo, libertar a sociedade da mentira conveniente que mata em nome da ordem. E talvez o maior mérito da revista, agora, seja forçar o mundo a encarar uma pergunta incômoda: quantas vidas mais precisam ser destruídas para que o óbvio se torne possível?

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