Quando o progresso cobra o preço da ambição humana

Inteligência artificial muda rumo das contratações / Reprodução

Uma das quatro maiores empresas de auditoria abandona discretamente a promessa de contratar 100 mil funcionários em todo o mundo até meados de 2026, em meio à ascensão da inteligência artificial


A decisão da PwC de abandonar sua promessa de contratar 100 mil novos funcionários até 2026, enquanto promove a inteligência artificial como solução milagrosa para a produtividade, é o retrato fiel de um capitalismo que, mais uma vez, sacrifica trabalhadores em nome da rentabilidade dos sócios. O anúncio — feito de forma “discreta”, sem alarde — simboliza não apenas uma inflexão estratégica de uma das maiores consultorias do planeta, mas uma profunda crise ética e estrutural de todo o modelo corporativo global.

Em 2021, em meio ao otimismo do pós-pandemia, a PwC prometia expansão, modernização e oportunidades. Falava-se em “investir em pessoas”, em “capacitar talentos”, em “formar líderes do futuro”. Quatro anos depois, a realidade é bem outra: cortes de 5.600 postos de trabalho em apenas um ano, metas de contratação engavetadas e o discurso da tecnologia usado como justificativa para encolher custos e preservar o lucro dos sócios.

O relatório anual de 2025 expõe, por trás da linguagem neutra e técnica, a verdadeira lógica do capital contemporâneo: quando as receitas desaceleram — neste caso, um crescimento tímido de 2,7%, inferior ao das concorrentes Deloitte e EY —, os primeiros a pagar a conta são os trabalhadores. Não os executivos milionários, nem os sócios que continuam a receber dividendos generosos, mas os funcionários comuns, que veem seus empregos evaporarem sob o pretexto de “otimização” e “eficiência”.

O presidente global da PwC, Mohamed Kande, tentou dourar a pílula: “Continuamos a contratar”, disse, ao mesmo tempo em que exaltava o treinamento de 315 mil funcionários em ferramentas de IA. Mas o que significa “capacitar em IA” quando milhares são dispensados e o trabalho humano é tratado como obsoleto? A tecnologia, que poderia ser instrumento de libertação e bem-estar, é transformada em ferramenta de exclusão — uma cortina de fumaça para justificar demissões e reforçar a concentração de renda no topo.

A substituição de pessoas por algoritmos não é inevitável; é uma escolha política. Escolha feita por corporações que veem a inteligência artificial não como um meio para melhorar a vida dos trabalhadores, mas como uma oportunidade para aumentar margens de lucro, eliminar custos e reduzir a contestação sindical. A PwC não está “se adaptando ao futuro”, como tenta vender, mas reforçando o velho modelo de sempre: menos gente, mais lucro, mais controle.

A ironia é que essa retração ocorre em meio a uma crise de credibilidade sem precedentes. A PwC enfrenta escândalos graves na China e na Austrália — desde o vazamento de informações sigilosas de consultorias governamentais até auditorias complacentes que mascararam fraudes corporativas, como no caso da Evergrande. Esses episódios revelam a falência moral de uma empresa que prega “qualidade” e “ética”, mas pratica a omissão e a conivência quando o dinheiro fala mais alto.

A resposta da PwC a esses escândalos foi “rever sua carteira de clientes” e abandonar operações em 13 países, a maioria na África. Mais uma vez, a decisão é apresentada como “gestão de risco”. Na prática, é a retirada de uma gigante global de regiões consideradas menos lucrativas, deixando economias emergentes ainda mais vulneráveis à lógica de dependência e desinvestimento.

O argumento de que a PwC está apenas “acompanhando o mercado” é enganoso. O grupo Big Four — que inclui também Deloitte, EY e KPMG — é mais do que um reflexo da economia: é um de seus arquitetos. São essas empresas que auditam governos, orientam reformas fiscais, aconselham privatizações e moldam políticas públicas segundo interesses corporativos. Quando a PwC corta empregos e esconde lucros, o impacto não é apenas interno — é sistêmico.

A ausência de transparência sobre o lucro líquido no último relatório anual é um detalhe revelador. Pela primeira vez desde a crise financeira de 2010, a PwC reduz seu quadro de funcionários, mas omite quanto lucrou no período. Se o crescimento da receita foi modesto, o dos dividendos dos sócios certamente não foi. Essa opacidade não é acidental: é o silêncio conveniente de quem prefere que a sociedade não veja o abismo entre o discurso de “transformação digital” e a realidade da exploração moderna.

Nos Estados Unidos, a empresa cortou 1.500 postos; no Oriente Médio, outros 1.500. No Reino Unido, reduziu drasticamente a contratação de recém-formados. E, na Ásia, onde enfrentou escândalos e retração econômica, viu a receita cair 4,1%. Mesmo assim, a PwC insiste que está “focada em qualidade” — uma palavra vazia quando a prioridade é agradar acionistas.

O que se observa é o colapso do mito da meritocracia corporativa. Não importam o desempenho individual, o esforço ou a “capacitação em IA”: o destino do trabalhador está nas mãos de um sistema que o vê como custo descartável. A mesma empresa que em 2021 prometia um futuro de inclusão agora lidera uma reestruturação global para preservar margens em tempos de crescimento “modesto”. É o capitalismo de plataforma travestido de inovação.

A esquerda precisa denunciar esse movimento não apenas como uma crise empresarial, mas como uma questão de classe. O avanço da inteligência artificial sob comando das grandes corporações não é um avanço tecnológico neutro; é um projeto político de concentração de poder e enfraquecimento do trabalho. A PwC é apenas um exemplo — emblemático, mas não isolado — de como a “economia do conhecimento” se tornou uma máquina de desigualdade.

Enquanto as consultorias globais celebram a “eficiência da IA”, milhões de trabalhadores perdem empregos, e o planeta acumula crises sobre crises: climática, econômica, moral. Talvez o verdadeiro aprendizado do caso PwC seja este: não é a tecnologia que ameaça o trabalho — é o capitalismo. E enquanto as empresas seguirem confundindo inovação com lucro rápido, toda promessa de “progresso” continuará soando como o que é — uma grande mentira corporativa embrulhada em código-fonte e retórica de transformação.

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