O governo Trump transforma energia nuclear em combustível político e tecnológico, reacendendo velhos riscos em nome da “grandeza americana”
Em um anúncio que parece saído diretamente de um roteiro distópico, o governo dos Estados Unidos revelou um acordo de US$ 80 bilhões para impulsionar a geração de energia nuclear destinada a alimentar o setor de inteligência artificial (IA). A parceria, firmada entre o governo Trump, a Brookfield Asset Management e a Cameco — controladora da Westinghouse, uma das gigantes do setor nuclear — é apresentada como um passo audacioso rumo ao “renascimento energético” e à “liderança global em IA”. No entanto, por trás do discurso triunfalista, o que se desenha é um projeto que combina autoritarismo tecnológico, dependência corporativa e risco ambiental em escala inédita.
Segundo o comunicado oficial, o plano prevê a construção de dez novos grandes reatores nucleares até 2030, como parte de uma ordem executiva assinada por Trump em maio. O governo financiará o projeto integralmente, fazendo deste o maior investimento público em energia nuclear em décadas. O Secretário de Energia, Chris Wright, exaltou a iniciativa como “a concretização da grande visão do Presidente Trump de energizar plenamente os Estados Unidos e vencer a corrida global na inteligência artificial”.
Mas é justamente essa retórica de “corrida global” que deve ser questionada. Sob o pretexto de não “ficar para trás” frente à China ou à Europa, o governo norte-americano se entrega, mais uma vez, à lógica da competição imperial, em que a tecnologia e a energia se tornam instrumentos de poder geopolítico, e não de emancipação social. O resultado é previsível: lucros astronômicos para conglomerados privados e riscos coletivos para o planeta.
A Westinghouse, que se apresenta como protagonista da nova era da energia limpa, tem um histórico marcado por escândalos financeiros e acidentes técnicos. Ao mesmo tempo, a aposta em energia nuclear como solução para a demanda da IA ignora alternativas sustentáveis, como a energia solar e eólica, que poderiam ser desenvolvidas com muito menor impacto ambiental e social. Ao preferir o nuclear — caro, perigoso e lento — Trump sinaliza que sua prioridade não é o bem-estar público, mas o rearmamento industrial do complexo tecno-militar americano.
A ligação entre energia nuclear e inteligência artificial não é casual. A IA, especialmente nos moldes em que vem sendo desenvolvida, é intensiva em consumo energético e centralizadora de poder. Grandes corporações como Google e Microsoft, que já anunciaram investimentos próprios em energia nuclear, buscam garantir seu domínio sobre as infraestruturas digitais do futuro — bancos de dados, sistemas de vigilância, redes de informação e até processos produtivos. A promessa de “eficiência” e “inovação” esconde um projeto de monopolização da energia e do conhecimento.
Trump, ao colocar o Estado a serviço desse projeto, reafirma a velha aliança entre capital financeiro, indústria bélica e discurso nacionalista. O suposto “renascimento nuclear” nada mais é do que a reedição de uma política energética ultrapassada, revestida de verniz tecnológico. Fala-se em IA como se fosse um avanço inevitável e neutro, mas o que está em jogo é o controle político e econômico de uma tecnologia que tende a aprofundar desigualdades — automatizando empregos, concentrando dados e reforçando estruturas de vigilância e repressão.
Em nome de um futuro “inteligente”, o governo norte-americano está disposto a reabrir feridas ambientais e sociais. Não se menciona, por exemplo, onde serão descartados os resíduos nucleares, quanto custará a manutenção dos reatores ou quais comunidades serão impactadas pela construção dessas usinas. As promessas de segurança e eficiência soam tão frágeis quanto o “sonho americano” que Trump tenta ressuscitar.
Enquanto isso, a retórica de “grandeza nacional” serve de cortina de fumaça para um processo de privatização do Estado. O dinheiro público financia as empresas que, depois, cobrarão pelo uso da energia gerada. O resultado é um modelo em que o risco é socializado e o lucro privatizado — marca registrada do neoliberalismo de guerra que Trump representa.
A esquerda, diante desse cenário, deve denunciar não apenas os riscos ambientais e econômicos, mas também a ideologia subjacente à fusão entre IA e energia nuclear. O projeto de Trump não é sobre tecnologia, é sobre poder. Não é sobre inovação, é sobre dominação. E, sobretudo, não é sobre o futuro — é sobre a tentativa de congelar o presente em um modelo excludente, hierárquico e autoritário.
A verdadeira inteligência — humana, coletiva e solidária — está em repensar o uso da energia e da tecnologia a serviço da vida, não do lucro. O que se anuncia como “parceria estratégica” é, na prática, um pacto de submissão: do Estado ao capital, da sociedade à máquina, da razão à ganância.
Trump quer iluminar o caminho da IA com energia nuclear. Mas talvez o que esteja realmente acendendo seja o pavio de um novo ciclo de desigualdade, dependência e risco global.
Porque nenhuma inteligência — artificial ou não — justifica irradiar o planeta em nome do progresso.