O império da liquidez começa a ruir por dentro

Três anos de aperto monetário deixaram marcas profundas: crédito escasso, salários contidos e um sistema que só reage quando os ricos sofrem / Reprodução

O banco central dos Estados Unidos promete estabilidade, mas quem paga a conta da escassez é a economia real — trabalhadores, famílias e pequenos negócios


O Federal Reserve, o poderoso banco central dos Estados Unidos, caminha para encerrar um dos ciclos mais longos de aperto monetário de sua história recente. O chamado Quantitative Tightening (QT), iniciado em 2022, drenou mais de US$ 2 trilhões do sistema financeiro, retirando liquidez e elevando os custos de financiamento. Agora, com sinais de tensão nos mercados e bancos recorrendo a linhas emergenciais de crédito, a instituição se vê obrigada a reconsiderar o rumo — não por compaixão social, mas porque o próprio sistema financeiro começa a ranger sob o peso de suas contradições.

O QT é, em essência, o oposto do Quantitative Easing (QE), política adotada em períodos de crise, como após o colapso de 2008 e durante a pandemia. No QE, o Fed injeta liquidez no sistema comprando títulos e ativos, alimentando o crédito e evitando um colapso. No QT, faz o inverso: deixa esses papéis vencerem sem reposição, retirando dinheiro de circulação. Em outras palavras, é um aperto monetário que, inevitavelmente, afeta a base da economia — o crédito, o emprego e o consumo.

A economia refém dos bancos

Não é preciso ser economista para perceber o problema estrutural: a economia norte-americana — e, por extensão, o capitalismo global — tornou-se refém de um sistema financeiro hipertrofiado, onde cada movimento do banco central serve, antes de tudo, para preservar a estabilidade dos mercados, não o bem-estar da população.

O Fed inicia um debate sobre o fim do QT justamente porque os sinais de estresse voltaram a aparecer. Bancos recorreram a mecanismos emergenciais de financiamento em níveis que não se viam desde a pandemia, um indício de que a liquidez está secando. Ou seja, enquanto Wall Street reclama da falta de dinheiro barato, Main Street — a economia real — já vive há meses sob o peso dos juros altos e da restrição de crédito.

Essa é a ironia cruel do sistema: o mesmo banco central que drenou liquidez para conter a inflação — pressionando famílias endividadas, pequenas empresas e trabalhadores — agora corre para aliviar a dor dos grandes bancos.

A lição esquecida de 2019

Entre os formuladores de política monetária, o medo é repetir o trauma de setembro de 2019, quando o aperto de liquidez fez as taxas de curto prazo dispararem, gerando pânico nos mercados. Naquele momento, o Fed foi obrigado a intervir às pressas, injetando bilhões para acalmar os investidores.

A história pode não se repetir exatamente, mas rima: novamente, há sinais de que o sistema bancário está mais frágil do que aparenta. O uso crescente da linha permanente de recompra do Fed — um mecanismo de emergência — indica que as reservas bancárias estão diminuindo perigosamente. Economistas alertam que o banco central está “muito perto” de cruzar o limite entre “liquidez abundante” e “liquidez apertada”.

Esse limite, no entanto, é mais do que técnico: é político. É o ponto em que a retórica de estabilidade financeira entra em conflito com a realidade social de uma economia desigual, onde o custo da política monetária é socializado, mas os lucros continuam privatizados.

A desigualdade que o Fed não quer enxergar

Mesmo com o balanço patrimonial ainda inflado — US$ 6,59 trilhões, mais que o dobro do nível pré-pandemia —, o Fed enfrenta críticas de todos os lados. O secretário do Tesouro, Scott Bessent, chegou a acusar o programa de QE de “ampliar a desigualdade social”. Embora sua crítica parta de um viés conservador, ela expõe uma verdade incômoda: o afrouxamento monetário, da forma como é implementado, beneficia desproporcionalmente o topo da pirâmide.

Quando o Fed injeta liquidez, o dinheiro não chega diretamente aos trabalhadores ou aos serviços públicos — ele entra pelos bancos e mercados financeiros, inflando os preços de ativos e fortalecendo quem já detém capital. É um “socialismo para os ricos”, seguido de um “austericídio” para os demais quando o ciclo se inverte.

Agora, com o QT chegando ao fim, o discurso muda: fala-se em “normalização”, em “cautela”, em “evitar choques de liquidez”. Mas pouco se fala sobre as consequências sociais de três anos de aperto monetário, que ajudaram a frear salários, conter investimentos e aumentar o custo da dívida das famílias.

O dilema do império financeiro

O que está em jogo não é apenas a política monetária dos Estados Unidos, mas o modelo global que ela sustenta. Desde 2008, o Fed atua como bombeiro de um sistema financeiro que vive incendiando a própria casa. Expande o balanço em crises, contrai em tempos de bonança, e repete o ciclo como se fosse inevitável — enquanto as desigualdades se aprofundam e o poder de decisão permanece concentrado em uma elite tecnocrática.

O fim do QT não deve ser visto como um gesto de prudência, mas como mais um capítulo de um sistema que só se move quando os riscos atingem os grandes. A economia real — os trabalhadores, os pequenos produtores, as famílias endividadas — permanece fora da equação.

Talvez seja hora de discutir não apenas quando o Fed deve parar de apertar ou afrouxar, mas para quem essas políticas servem. Porque, enquanto a liquidez for tratada como um privilégio de mercado e não como um instrumento de justiça social, o capitalismo seguirá reproduzindo a sua própria crise — e chamando isso de estabilidade.

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