Os EUA podem pagar caro pela guerra comercial de Trump contra a Índia

A guerra econômica que prometia fortalecer os Estados Unidos ameaça corroer seu prestígio global e acelerar o fim da era do dólar


A decisão do presidente norte-americano Donald Trump de impor tarifas de 50% sobre produtos importados da Índia, em vigor desde agosto, pode ter criado um abalo imediato na economia indiana, mas tende a provocar um efeito muito mais profundo — e duradouro — sobre os próprios Estados Unidos. Ao atingir um parceiro estratégico crucial, aumentar a inflação e pressionar a cotação do dólar, Trump arrisca minar a influência econômica americana e comprometer a política para o Indo-Pacífico, que por duas décadas tem sido peça-chave da diplomacia de Washington para conter o avanço da China.

A reação em Nova Délhi foi de indignação. Além da severidade das tarifas, a Índia se sentiu particularmente alvejada pela sobretaxa de 25% aplicada como punição pela compra de petróleo russo com desconto — medida que, segundo Trump, representa um “financiamento indireto” da guerra de Moscou na Ucrânia. A ironia é que nem a China nem a União Europeia, igualmente dependentes da energia russa, sofreram sanções semelhantes.

No curto prazo, o impacto econômico sobre a Índia será considerável. Os Estados Unidos são hoje o principal parceiro comercial indiano, respondendo por cerca de 20% das exportações e mais de 2% do PIB do país. Mesmo com exceções pontuais — como para o setor farmacêutico e o de eletrônicos —, aproximadamente dois terços dos produtos enviados aos EUA passaram a ser tributados em 50%. Setores tradicionais, como o têxtil, o de camarão, o de diamantes e o de autopeças, concentrados em pequenas cidades e intensivos em mão de obra, estão entre os mais vulneráveis. O resultado previsível é a perda de milhares de empregos e o agravamento das dificuldades enfrentadas pelos jovens que buscam colocação no mercado.

Especialistas estimam que o impacto das tarifas possa reduzir o crescimento do PIB indiano entre 0,3 e 0,8 ponto percentual. O golpe vem em um momento sensível: nas últimas décadas, a Índia tem sido uma rara exceção positiva na economia global, sustentando um crescimento médio acima de 6% ao ano, impulsionado em parte pelas exportações e pelos investimentos americanos. Os laços comerciais e tecnológicos entre as duas nações transformaram-se em uma relação simbiótica. Romper essa engrenagem, alertam analistas, seria prejudicial para ambos os lados.

Para os EUA, a medida pode se transformar em um tiro no pé. O encarecimento de insumos e bens intermediários indianos — do couro à engenharia de precisão — tende a pressionar os custos de produção e, consequentemente, os preços ao consumidor. A ironia é que Trump retornou à Casa Branca embalado pela insatisfação popular com a inflação sob o governo de Joe Biden; no entanto, sua política tarifária pode gerar exatamente o efeito contrário, corroendo seu capital político.

A punição à compra de petróleo russo também é vista como um erro estratégico. As importações indianas de petróleo com desconto têm ajudado a moderar os preços globais do barril, beneficiando, inclusive, economias ocidentais. Interromper esse fluxo pode provocar um salto nos preços que nem a OPEP nem os produtores de xisto norte-americanos conseguiriam compensar rapidamente — um choque que elevaria custos energéticos e reacenderia a inflação mundial.

A cruzada de Trump contra o déficit comercial com a Índia também ignora aspectos mais amplos da balança econômica. Quando se consideram investimentos, royalties, vendas de armamentos e serviços educacionais, os EUA saem ganhando. Estudantes indianos — o maior contingente estrangeiro em universidades americanas — injetam bilhões de dólares por ano na economia do país. Além disso, o Vale do Silício depende fortemente de talentos vindos da Índia, e muitas multinacionais mantêm centros de desenvolvimento e suporte técnico em cidades indianas, reduzindo custos e aumentando lucros.

Essa teia de interdependência pode se desfazer rapidamente. E o prejuízo não será apenas econômico. A Índia é o lar de uma classe média em expansão que deve ultrapassar 800 milhões de consumidores até 2030 — um mercado gigantesco que as empresas americanas correm o risco de perder.

No campo geopolítico, o isolamento da Índia representa uma ameaça ainda maior. Desde o início dos anos 2000, tanto democratas quanto republicanos investiram na aproximação com Nova Délhi como forma de contrabalançar o poder chinês. A cooperação no âmbito do grupo Quad, o compartilhamento de inteligência e o fortalecimento das cadeias de suprimentos foram pilares dessa estratégia. As tarifas de Trump, porém, colocam tudo isso em xeque.

Na recente cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, o primeiro-ministro Narendra Modi se reuniu com Vladimir Putin e Xi Jinping, reforçando a postura de “alinhamento múltiplo” da Índia. Um eventual reaproximação com a China — o oposto do que Washington almejava — poderia redesenhar o equilíbrio de poder no Indo-Pacífico. Como alertou a ex-embaixadora americana na ONU, Nikki Haley: “Para enfrentar a China, os Estados Unidos precisam ter um aliado na Índia.”

Enquanto isso, os países fundadores do BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — intensificam esforços para reduzir a dependência do dólar e criar mecanismos alternativos de pagamento em moedas locais. A política agressiva de Trump apenas acelera essa tendência. Caso avancem, esses planos podem corroer o privilégio dos EUA de financiar-se a baixo custo e aplicar sanções com liberdade — um dos pilares do poder global americano.

Para a Índia, o desafio é transformar o revés em oportunidade, diversificando mercados e fortalecendo a indústria interna. Reformas podem ser dolorosas, mas o país tem mostrado capacidade de adaptação e resiliência. Já os Estados Unidos enfrentarão um dilema mais complexo: reconstruir a confiança com um parceiro que aspira a ser uma potência autônoma em um mundo multipolar.

No fim das contas, a guerra comercial lançada por Trump contra a Índia pode render ganhos políticos momentâneos, mas enfraquece os interesses estratégicos e econômicos dos EUA. Ao afastar-se de uma das economias que mais crescem no planeta, encorajar alternativas ao dólar e abalar cadeias produtivas essenciais, Washington corre o risco de desperdiçar uma aliança vital. A Índia, por sua vez, pode até sair ferida — mas provavelmente sairá também mais independente, mais forte e mais influente no cenário global.

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