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Pessoas com deficiência mostram que a IA pode ‘ser ponte’

O avanço tecnológico só será progresso real quando incluir todos os corpos, mentes e modos de existir que a sociedade tentou silenciar Enquanto boa parte do debate público sobre inteligência artificial (IA) se concentra em temores sobre o desemprego, vigilância e concentração de poder nas mãos das grandes corporações, um outro movimento — silencioso, mas […]

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Inteligência artificial e o poder de libertar
Para quem sempre viveu à margem, a IA não representa ameaça, mas chance de reescrever o próprio destino com independência e voz / Reprodução

O avanço tecnológico só será progresso real quando incluir todos os corpos, mentes e modos de existir que a sociedade tentou silenciar


Enquanto boa parte do debate público sobre inteligência artificial (IA) se concentra em temores sobre o desemprego, vigilância e concentração de poder nas mãos das grandes corporações, um outro movimento — silencioso, mas profundamente transformador — está em curso. Ele nasce da resistência e da criatividade de pessoas com deficiência que, ao invés de temer a tecnologia, estão se apropriando dela para redefinir o próprio conceito de inclusão.

O Purple Fest, realizado em Goa, na Índia, é um exemplo simbólico desse novo horizonte. Mais do que um evento de inovação, o festival se tornou um espaço de resistência e de esperança. Ali, empreendedores, pesquisadores e ativistas mostraram como a IA pode se tornar um instrumento de libertação, não de exclusão.

Da acessibilidade à autonomia

As tecnologias assistivas impulsionadas pela IA — como leitores de tela com interação por voz, painéis adaptativos e sistemas de legendagem automática em tempo real — não são meros gadgets futuristas. Elas representam a possibilidade concreta de transformar o acesso em autonomia, e a autonomia em liberdade: liberdade para aprender, trabalhar, liderar e existir plenamente em um mundo que há séculos impõe barreiras.

A inclusão real não nasce de discursos institucionais ou de campanhas de marketing socialmente responsáveis. Ela nasce do protagonismo de quem vive a exclusão na pele. É o caso de Surashree Rahane, empreendedora nascida com pé torto congênito e polimelia, que cresceu em um ambiente onde a deficiência não era obstáculo, mas sim uma forma diferente de perceber o mundo. Ao criar a Yearbook Canvas, uma startup de anuários digitais, e ao colaborar com a Newton School of Technology, Rahane mostra o que acontece quando o conhecimento tecnológico se alia à vivência social: a inovação se torna inclusão.

Ela lembra que “a IA pode democratizar o acesso à educação, mas somente se a ensinarmos a compreender alunos com diferentes perfis”. É um alerta crucial — e profundamente político. A tecnologia não é neutra. Se os algoritmos forem treinados com os mesmos preconceitos que moldam a sociedade, teremos apenas uma versão mais brilhante do mesmo viés de sempre.

O grande equalizador

A fala de Prateek Madhav, CEO da AssisTech Foundation (ATF), ressoa como um manifesto: “Enquanto o mundo se preocupa com a IA tirando empregos, para pessoas com deficiência, a IA está criando empregos”. Essa inversão de lógica revela o potencial emancipador da tecnologia quando ela é orientada por valores humanos e não por interesses de mercado.

Em um sistema capitalista que há séculos exclui corpos e mentes fora da norma produtiva, a IA aparece — pela primeira vez — como um “grande equalizador”. Para pessoas com deficiência, ela não é ameaça, mas oportunidade. O exemplo de Ketan Kothari, consultor do Centro de Recursos para Deficientes Visuais Xavier, ilustra essa revolução silenciosa. Com o apoio de ferramentas de IA, ele consegue hoje participar plenamente da vida profissional: “formatar documentos, participar de reuniões com legendas ao vivo, gerar descrições visuais”. A tecnologia, quando guiada por empatia e justiça, transforma imaginação em funcionalidade.

Inclusão: um projeto coletivo, não caridade

Como bem lembra Tshering Dema, do Escritório de Coordenação para o Desenvolvimento da ONU, o que está acontecendo na Índia é parte de uma transição global. Inclusão, diz ela, “não se resume a leis ou infraestrutura; trata-se de mentalidade e planejamento compartilhado. O futuro do trabalho deve ser construído não apenas para as pessoas, mas com elas”.

Essa afirmação carrega um princípio fundamental da esquerda: a inclusão não é concessão, é construção coletiva. A tecnologia, por si só, não muda o mundo — são as relações sociais e políticas que determinam se ela será libertadora ou opressora.

Um outro futuro possível

O que se viu no Purple Fest não foi uma celebração cega da inovação, mas uma reivindicação política do direito de existir plenamente. Foi a prova de que a IA pode — e deve — ser usada para promover justiça social, equidade e independência.

Enquanto o Vale do Silício concentra seus esforços em criar ferramentas para aumentar lucros e eficiência, pessoas como Rahane, Madhav e Kothari mostram que existe outro caminho: o da tecnologia como bem comum, desenvolvida a partir das experiências de quem mais precisa dela.

Esse é o desafio ético e político do nosso tempo: impedir que a inteligência artificial reproduza o mesmo sistema de exclusão que prometeu resolver. Que ela não se torne o espelho digital das desigualdades sociais, mas sim um instrumento de emancipação coletiva.

Se for guiada por empatia, solidariedade e justiça, a IA pode fazer o que poucos sistemas humanos conseguiram: ajudar a humanidade a se tornar um pouco mais humana.

Porque o verdadeiro avanço tecnológico não é aquele que substitui pessoas, mas o que as liberta.

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