Pequim, Bruxelas e Washington intensificam suas estratégias para controlar as cadeias de suprimentos, mas a China parece estar sempre um passo à frente
A guerra comercial entre as grandes potências econômicas do planeta ganhou novos contornos. Enquanto Estados Unidos, União Europeia e China travam uma disputa silenciosa — e cada vez mais sofisticada — pelo controle das cadeias de suprimentos globais, Pequim vem demonstrando uma habilidade estratégica que a coloca em vantagem.
O governo norte-americano, sob a administração de Joe Biden, popularizou a expressão “quintal pequeno, cerca alta” para justificar os controles de exportação de chips avançados. A ideia seria proteger a tecnologia mais sensível dos EUA sem comprometer o comércio internacional. Na prática, porém, essa limitação mostrou-se ilusória. Os semicondutores, essenciais para a inteligência artificial, são o coração da nova economia digital — e restringi-los afeta diretamente o equilíbrio global de poder tecnológico.
Enquanto isso, a China reagiu com medidas precisas e contundentes. Pequim ampliou os controles sobre exportações de terras raras — minerais fundamentais para a fabricação de chips, baterias e equipamentos eletrônicos —, atingindo em cheio a indústria ocidental. As novas restrições devem elevar preços e reduzir a competitividade das manufaturas fora do território chinês, um movimento que fortalece ainda mais o poder industrial do país asiático.
Esse controle sobre insumos estratégicos tem consequências reais. Recentemente, atrasos provocados pelas barreiras chinesas interromperam linhas de montagem de automóveis em países que vão de Illinois, nos Estados Unidos, até a Índia. A reação do ex-presidente Donald Trump foi previsível: ameaçou novas tarifas. Já a Europa, que inicialmente parecia imune à crise das terras raras, agora se vê no centro de uma disputa geopolítica sem precedentes.
Em outubro, o governo holandês interveio na fabricante de chips Nexperia — uma empresa de origem holandesa, mas controlada por capital chinês — alegando “deficiências de governança” e riscos às capacidades tecnológicas da Europa. Pequim respondeu de imediato, suspendendo as exportações internacionais da Nexperia. Embora a produção ocorra em fábricas europeias, a maior parte da embalagem dos chips é feita em Dongguan, na China — e é justamente daí que partem os bloqueios.
O impacto foi profundo: segundo relatórios locais, quase metade das montadoras europeias utiliza chips produzidos pela Nexperia, além de 86% das empresas de dispositivos médicos, 95% da engenharia mecânica e toda a indústria de defesa do continente. Em outras palavras, o Ocidente depende fortemente de uma cadeia controlada por Pequim. Se a China não liberar as exportações, a base industrial europeia pode enfrentar uma crise sem precedentes.
Enquanto diplomatas de Haia, Bruxelas e outras capitais negociam uma saída com Pequim, analistas já discutem a chamada estratégia de “escalada para negociação” — um movimento arriscado que incluiria limitar a venda de equipamentos de fabricação de chips e componentes aeroespaciais para a China.
O problema é que as três maiores economias do mundo — China, União Europeia e Estados Unidos — estão presas no mesmo dilema: como impor custos altos ao rival sem prejudicar a própria economia? Pequim, por exemplo, ainda depende de semicondutores fabricados em Taiwan e do dólar americano. Washington, por outro lado, teme a reação negativa dos mercados financeiros a qualquer escalada, algo que poderia afetar diretamente a popularidade do governo. A diferença é que Xi Jinping, sem eleições intermediárias e com controle sobre os grandes fundos estatais, pode agir com mais liberdade do que qualquer líder ocidental.
Há também um fator de inteligência industrial em jogo. A complexidade das cadeias de suprimentos é tamanha que nem mesmo as grandes corporações compreendem totalmente a origem e o fluxo de seus insumos. Ao exigir licenças específicas para a exportação de terras raras, a China não apenas ganha poder de barganha, mas também visibilidade sobre o mapa global da produção tecnológica — algo que poderá usar de forma cirúrgica em futuras disputas.
Essa visão de longo prazo não é nova. Ainda em 2020, no auge da pandemia, Xi Jinping declarou que a meta da China era “reduzir a dependência das cadeias produtivas internacionais em relação à China”. Um paradoxo calculado: enquanto o Ocidente buscava diminuir sua dependência do gigante asiático, Pequim trabalhava para garantir que o mundo continuasse precisando dela.
A crise da Covid-19 deveria ter levado empresas a abandonar o modelo “just in time” — baseado em estoques mínimos e entregas rápidas — em favor do “just in case”, mais preparado para interrupções. Mas, ao dosar cuidadosamente o fornecimento de terras raras e outros insumos, a China fez exatamente o contrário: transformou a dependência global em uma arma econômica.
No fim das contas, o que parecia uma disputa comercial se transformou em uma guerra de resiliência e informação. E, por enquanto, todas as rotas levam a Pequim.