Enquanto o mundo teme a IA, pessoas com deficiência a usam para criar trabalho, liberdade e um novo significado para o verbo “pertencer”
Para milhões de pessoas com deficiência em todo o planeta, a inteligência artificial (IA) começa a representar muito mais do que inovação tecnológica — ela surge como uma promessa concreta de autonomia, inclusão e dignidade. No Purple Fest, realizado em Goa, na Índia, empreendedores e especialistas estão mostrando como a IA está transformando o campo da tecnologia assistiva em uma ferramenta de empoderamento real no dia a dia.
Quando desenvolvidas a partir das experiências vividas por pessoas com deficiência, soluções de IA como leitores de tela com interação por voz, painéis adaptativos e sistemas de legendagem automática em tempo real não apenas eliminam barreiras, mas também ampliam oportunidades. Essas ferramentas redefinem o conceito de acessibilidade — elas convertem o simples acesso em autonomia, e a autonomia em liberdade para aprender, trabalhar, liderar e contribuir plenamente com a sociedade.
Evitar uma “versão mais brilhante do mesmo preconceito de sempre”
A empreendedora Surashree Rahane é um exemplo vivo desse novo cenário. Nascida com pé torto congênito e polimelia — condição em que a pessoa nasce com membros extras —, ela cresceu em um ambiente familiar onde a deficiência nunca foi vista como obstáculo, mas como uma forma diferente de interagir com o mundo.
“Meus mentores sempre diziam: não procurem apenas empregos, criem-nos”, relembra. “Foi assim que aprendi que a própria liderança é inclusão.”
Hoje, Rahane é fundadora e CEO da Yearbook Canvas, uma startup que desenvolve anuários digitais personalizados para instituições acadêmicas. Durante sua trajetória, percebeu que os desafios não estavam apenas nas limitações físicas, mas também nas barreiras estruturais invisíveis — como falta de acessibilidade, redes de financiamento excludentes e modelos educacionais inflexíveis.
Determinada a mudar esse cenário, ela trabalha em parceria com a Newton School of Technology, nas proximidades de Nova Délhi, desenvolvendo ferramentas de aprendizagem baseadas em IA que se ajustam ao ritmo de cada aluno. Para Rahane, o potencial da inteligência artificial na educação é imenso, mas depende de uma abordagem responsável:
“A IA pode democratizar o acesso à educação, mas somente se a ensinarmos a compreender alunos com diferentes perfis. Caso contrário, corremos o risco de criar uma versão mais sofisticada do mesmo viés de sempre.”
O “grande equalizador”
A revolução tecnológica impulsionada pela IA está abrindo portas antes consideradas inalcançáveis. Desde sistemas de conversão de voz em texto para pessoas com dificuldades de fala até cadeiras de rodas controladas por gestos, o que antes parecia ficção científica agora é parte da vida cotidiana de muitos.
Para Prateek Madhav, CEO da AssisTech Foundation (ATF), a IA é “o grande equalizador”. Ele contrapõe o medo global de que a tecnologia substitua empregos:
“Enquanto o mundo se preocupa com a IA tirando empregos, para pessoas com deficiência, a IA está criando empregos.”
Um dos exemplos práticos vem de Ketan Kothari, consultor do Centro de Recursos para Deficientes Visuais Xavier, em Mumbai. Ele conta como as ferramentas de IA lhe proporcionaram independência total no ambiente profissional.
“Hoje consigo formatar documentos, participar de reuniões com legendas ao vivo e até gerar descrições visuais por meio de aplicativos”, explica. “A IA transformou a imaginação em funcionalidade.”
Inclusão como construção coletiva
O Purple Fest reúne majoritariamente empreendedores e líderes indianos, mas o impacto das experiências apresentadas vai muito além das fronteiras da Índia. Para Tshering Dema, do Escritório de Coordenação para o Desenvolvimento da ONU, o evento reflete um movimento de alcance global.
“Esta não é uma história de um único país – é uma transição global”, afirma. “Inclusão não se resume a leis ou infraestrutura; trata-se de mentalidade e planejamento compartilhado. O futuro do trabalho deve ser construído não apenas para as pessoas, mas com elas.”
Um futuro de oportunidades
O que se viu em Goa não foi apenas uma exposição de tecnologia, mas uma visão de futuro. Um futuro em que a inteligência artificial é usada não como substituto da capacidade humana, mas como amplificadora do potencial de cada indivíduo, independentemente de suas limitações físicas ou sensoriais.
Enquanto o mundo debate os riscos éticos e econômicos da IA, pessoas como Surashree Rahane, Prateek Madhav e Ketan Kothari mostram que a resposta pode estar justamente no uso da tecnologia para promover justiça, equidade e independência.
A revolução digital, quando orientada por empatia e propósito, pode transformar vidas — e talvez, pela primeira vez, a inteligência artificial esteja ajudando a humanidade a se tornar um pouco mais humana.


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