Documentos expõem a cumplicidade das elites e a política do silêncio que protegeu um predador em troca de influência e conveniência
A divulgação de mais de 20 mil páginas de documentos ligados a Jeffrey Epstein não é apenas a abertura de mais um capítulo de um escândalo judicial. É a reabertura de uma ferida social que questiona as fundações morais das elites do poder. Os e-mails, com suas menções a Donald Trump, Príncipe Andrew e figuras como Peter Mandelson, não são apenas fios de uma teia criminal; são um sintoma de uma cultura de impunidade e conivência, onde a proximidade com o poder parece anestesiar o senso ético mais básico.
A reação imediata e furiosa dos republicanos, acusando os democratas de criar uma “narrativa falsa”, segue um roteiro previsível de negacionismo e contra-ataque. No entanto, a estratégia de tentar descredibilizar as revelações, em vez de enfrentar seu conteúdo de frente, é reveladora.
A defesa da Casa Branca, centrada na alegação de que Trump “expulsou Epstein de seu clube décadas atrás”, soa como um gesto desesperado para erguer um muro moral onde existe, na verdade, uma longa estrada de convivência e associação.
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Os e-mails em si são um estudo sobre a linguagem do poder e da manipulação. A troca de 2011, em que Epstein se refere a Trump como “aquele cachorro que não latiu”, e a menção a Virginia Giuffre, não constituem, isoladamente, uma prova judicial de crime.
Mas elas pintam um quadro muito mais insidioso: o de um círculo íntimo onde a existência de vítimas e a dinâmica de poder sobre elas eram um assunto conhecido e comentado. A afirmação de Epstein de que Trump “sabia das meninas” é uma peça chocante neste quebra-cabeça, sugerindo uma consciência da exploração que ocorria à sua volta.
A correspondência com Michael Wolff é ainda mais elucidativa do caráter transacional dessas relações. A oferta de Wolff para “acabar” com Trump em troca de “simpatia” pública para Epstein, e a discussão cínica sobre como Trump poderia usar Epstein como um trunfo contra o “politicamente correto”, revelam um jogo perverso onde a reputação de um predador sexual e a campanha de um futuro presidente eram tratadas como meras commodities a serem negociadas. É a política em sua forma mais degenerada: um comércio de influência e silêncio, desprovido de qualquer princípio.
A extensão internacional da rede, com a reafirmação dos vínculos com o Príncipe Andrew e Peter Mandelson, demonstra que este não era um problema americano, mas sim uma patologia global das elites.
A trofa casual de Mandelson com Epstein em 2016, anos após a condenação do financiador, ilustra uma normalidade chocante. Mostra como figuras públicas proeminentes estavam dispostas a normalizar e manter relações com um criminoso sexual convicto, separando completamente a sua conduta moral pública das suas associações privadas.
O apelo eloquente de Annie Farmer, uma das sobreviventes, por “transparência total” é o coração moral desta história. Enquanto os políticos se digladiam em acusações partidárias, são as vozes das vítimas que carregam o fardo da busca por justiça. A sua demanda não é por vingança, mas por verdade – uma verdade que as poderosas redes de influência teimam em obscurecer.
Conclui-se, portanto, que o verdadeiro escândalo destes e-mails vai além de qualquer crime específico. É o escândalo da normalização. É a revelação de que homens poderosos, incluindo um ex-presidente, operavam em um ecossistema onde um predador sexual conhecido não era um pária, mas um interlocutor, um conselheiro político e um contato social válido. Esta não é uma questão jurídica apenas, mas uma profunda crise ética.
As sombras projetadas por estes e-mails não são apenas sobre o que Epstein fez, mas sobre o que tantos outros estavam dispostos a ignorar para permanecerem dentro dos círculos do poder. E essa é uma lição amarga para qualquer sociedade que se pretenda justa.