O vetusto jornalão de São Paulo, bastião do conservadorismo no estado mais rico do país, também perdeu a paciência com a falta de seriedade, profissionalismo e compromisso do deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP), com seu vai-e-vêm ridículo de versões sobre o projeto de lei anti-faccção.
Leia a íntegra do editorial do jornal nesta sexta-feira 14 de novembro de 2025:
O País assiste a mais um espetáculo lamentável na Câmara dos Deputados em torno de um tema que deveria ser tratado com maturidade e espírito público: o combate ao crime organizado. Designado relator do projeto de lei antifacção, o deputado Guilherme Derrite (PP-SP) conseguiu a façanha de desagradar a todos: governo federal, governos estaduais, promotores, policiais e, sobretudo, a sociedade, que segue esperando respostas eficazes para a audácia das facções criminosas.
Em apenas cinco dias, Derrite apresentou quatro versões de seu substitutivo. A última, protocolada na noite do dia 12 passado, é quase um fac-símile do texto apresentado originalmente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O vaivém é tão confuso que até o nome do projeto já mudou: de Marco Legal do Combate ao Crime Organizado para Marco Legal do Combate ao Crime Organizado Ultraviolento – como se isso tivesse alguma importância para a sociedade. Os rascunhos, contraditórios, pintam o retrato de um relator perdido, incapaz de construir um consenso mínimo sobre um texto crucial para a segurança pública.
Ninguém sabe exatamente o que está sendo discutido. As negociações entre Executivo e Legislativo são marcadas por idas e vindas, mas sem liderança e coerência. O pastelão é tão absurdo que até os governadores de oposição a Lula reunidos no chamado “consórcio da paz” tiveram de ir a Brasília para pedir ao presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que adiasse a votação do projeto por ao menos 30 dias.
Como sublinhamos nesta página, Derrite começou sua relatoria de modo razoável, evitando cair na armadilha populista de equiparar facções criminosas a organizações terroristas – um disparate conceitual, jurídico e prático. Depois, no entanto, não teve habilidade política para chegar a um texto consensual, desfigurando o projeto a ponto de ninguém entender, nem mesmo especialistas, o que afinal irá à votação. Numa das versões, Derrite alterou as competências da Polícia Federal, provocando uma reação unânime de policiais, juristas e parlamentares de quase todas as bancadas. Em outra, chegou a incluir dispositivos que dificultavam a apreensão de bens e recursos das facções.
O texto está em constante mutação porque está premido por pressões ideológicas e interesses eleitorais. Não é assim que se trata uma lei penal tão complexa, que deve ser discutida com base em critérios técnicos e, principalmente, orientada por uma visão de Estado – vale dizer, apartidária – do problema da segurança pública. As grandes lideranças das facções criminosas certamente se sentem muito confortáveis em meio a essa barafunda.
A Câmara, em vez de discutir como fortalecer a capacidade investigativa do poder público contra essas verdadeiras máfias, que estão infiltradas no Estado e na economia formal, perde dias debatendo se o PCC ou o Comando Vermelho podem ser chamados de “terroristas”, uma distração inconsequente que diz muito sobre o que realmente tem motivado os parlamentares nesta hora grave: a eleição de 2026.
O Brasil precisa de um marco legal racional e moderno parecido com a legislação antimáfia da Itália, que fortaleça as instituições e aperfeiçoe os instrumentos já existentes. Os Códigos Penal e de Processo Penal, além da Lei das Organizações Criminosas, já oferecem, hoje, base suficiente para enfrentar o crime organizado. A Operação Carbono Oculto, que desferiu um duro golpe nas finanças do PCC ao integrar forças estaduais e federais, prova que o Estado pode agir com eficiência quando há coordenação e inteligência – e com base na legislação em vigor. É disso que o País carece, e não de retórica truculenta ou de leis improvisadas.
Por fim, não se pode desvincular a bagunça causada por Derrite do erro de análise de alguns governadores e parlamentares, empolgados com pesquisas que apontaram apoio massivo à recente operação policial nos Complexos da Penha e do Alemão, no Rio. Eles parecem acreditar que endurecer o discurso e a lei basta para agradar o eleitorado. A população está farta da violência das facções, mas também cansada da ausência do Estado. É disso que se trata. Quer segurança, não espetáculo; quer presença do poder público, não banhos de sangue travestidos de combate ao crime.