No palco das finanças, a luta por mais supervisão pode esconder a mesma lógica que antes deixou os mercados livres demais para falhar
Quase quinze anos após a crise financeira que abalou o mundo, os fantasmas da desregulamentação e da supervisão fragmentada ainda assombram os corredores do poder em Bruxelas. Agora, a União Europeia (UE) prepara-se para dar um passo significativo – e polémico – no sentido de uma maior centralização do controlo sobre os seus mercados financeiros. Os planos preliminares que vêm a público, que conferirão novos e alargados poderes à Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA), são mais do que um mero ajuste técnico. São um sintoma de uma tensão fundamental no projeto europeu: a luta entre a soberania nacional e a necessidade premente de uma governação económica coletiva e robusta.
A proposta da Comissão Europeia é clara: capacitar a ESMA para supervisionar diretamente câmaras de compensação, depositários e plataformas de negociação consideradas “significativas”, sem falhar o emergente e volátil mundo das criptomoedas.
A justificação oficial reside no nobre objetivo de permitir que o capital flua mais livremente, eliminando barreiras e fomentando o crescimento económico. É um argumento sedutor, mas que não pode ser analisado sem se olhar para o contexto mais amplo.
Desde a sua fundação, a ESMA foi uma entidade com um braço relativamente curto. Ao contrário da sua congénere norte-americana, a SEC – que possui amplos poderes para fiscalizar diretamente vastas áreas do mercado –, o papel da ESMA foi historicamente o de um coordenador, um harmonizador de standards entre os reguladores nacionais.
Esta nova mudança representa, portanto, uma evolução filosófica. É o reconhecimento tácito de que, num mercado financeiro profundamente interligado, uma teia de supervisores nacionais, por vezes com interesses divergentes, é insuficiente para conter os riscos sistémmicos. A crise mostrou-nos, de forma dolorosa, que quando um gigante financeiro tropeça, a queda é sentida em toda a praça, sem pedir licença às fronteiras.
No entanto, é ingénuo ignorar as forças em jogo por trás desta centralização. A mudança, defendida com “maior entusiasmo pela França e pelas instituições da UE”, como revelam as informações, não é consensual. De um lado, estão os que veem na supervisão centralizada um antídoto necessário contra a “corrida ao fundo” em que alguns estados-membros poderiam embarcar para atrair negócios, flexibilizando regras em detrimento da estabilidade geral. Do outro, estão estados-membros que relutam em ceder mais parcelas da sua soberania e empresas que temem, com razão ou sem ela, ser asfixiadas por mais uma camada de burocracia.
Esta tensão é o cerne da questão democrática na UE. A criação de um conselho executivo independente para a ESMA é um elemento crucial. A quem é que este órgão prestará contas? Como será garantido que os seus atos servem o interesse público europeu, e não apenas a lógica intrínseca dos mercados financeiros?
A transferência de poder de instâncias nacionais, por mais imperfeitas que sejam, para um organismo técnico e supranacional, exige um contrapeso de transparência e escrutínio democrático à altura. A proposta de reduzir a discricionariedade nacional, convertendo diretivas em regulamentação, é um exemplo: ganha-se em uniformidade, mas perde-se em capacidade de adaptação local e, potencialmente, em debate democrático nacional sobre essas mesmas regras.
A inclusão das empresas de criptomoedas na alçada direta da ESMA é um aceno de realismo. Este setor, que se autoproclama como a vanguarda da descentralização, tornou-se um campo de especulação desenfreada e de riscos opacos para os cidadãos comuns. Trazê-lo para o âmbito da supervisão é um imperativo de proteção, um reconhecimento de que nenhum espaço da economia, por mais novo que seja, pode operar como um faroeste legal.
Em suma, a expansão dos poderes da ESMA é um movimento ambivalente. Pode ser lida como uma vitória da racionalidade técnica sobre os particularismos nacionais que tantas vezes fragilizaram a UE. É uma tentativa de construir os alicerces de uma verdadeira soberania financeira europeia, capaz de enfrentar gigantes como a SEC americana em pé de igualdade.
Contudo, do ponto de vista da esquerda, este processo não pode ser celebrado de forma acrítica. A centralização, por si só, não é sinónimo de justiça ou de controlo democrático. A verdadeira questão que se coloca é: a serviço de quem estará esta supervisão reforçada? Servirá para domar a finança especulativa, para tributar eficazmente as transações, para proteger os fundos dos pequenos investidores e para direcionar o capital para a transição ecológica e social? Ou será, no limite, um mecanismo para “permitir que o capital flua mais livremente”, desimpedido e descomprometido com os direitos sociais e o ambiente?
A União Europeia está, mais uma vez, num cruzamento. O caminho para uma supervisão financeira forte e centralizada é necessário, mas é um caminho que deve ser pavimentado com mais democracia, mais controlo cidadão e uma clara subordinação dos mercados aos interesses da maioria.
Caso contrário, estaremos apenas a trocar uma fragmentação ineficiente por uma concentração de poder igualmente perigosa. O diabo, como sempre, estará nos detalhes da regulação que ainda estão por vir.