Por Priscila Miranda
O conceito de soberania é importante demais para ser tratado com descuido. É preciso valorizá-lo sem cair na armadilha de transformá-lo em bandeira puramente política. Soberania tem a ver com segurança econômica do país. Tem a ver com dinheiro no bolso das empresas e dos cidadãos brasileiros. Quando falamos de soberania no mercado de streaming, não estamos tratando de uma questão abstrata ou ideológica. Estamos falando de economia, de forma objetiva e direta.
A pergunta central é simples: como financiar a produção local do audiovisual brasileiro para que ela melhore, avance e se fortaleça? Como proteger e desenvolver uma indústria que gera empregos e renda no Brasil? Essas questões definem se o país terá ou não controle sobre sua própria cultura e sobre os recursos que ela movimenta.
Dito isso, é preciso afirmar que a regulamentação do streaming no Brasil é uma questão de soberania nacional. Quando falamos em streaming, falamos de serviços de vídeo sob demanda como Netflix, Amazon Prime Video, Disney+, Globoplay e YouTube, plataformas que permitem assistir conteúdo audiovisual pela internet quando o usuário quiser.
O Brasil acaba de aprovar na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 8.889/2017, que estabelece regras para essas plataformas. A votação aconteceu entre os dias 4 e 5 de novembro de 2025. O texto ainda precisa passar pelo Senado Federal antes de ir à sanção presidencial. A lei prevê a cobrança da Condecine, uma contribuição que varia de 0,1% a 4% sobre a receita bruta anual das plataformas.
Não concordo com a maneira como essa lei foi discutida e aprovada. Ela enfraquece o Estado brasileiro. Não é boa para o Brasil. É preciso fazer ajustes urgentes antes da aprovação no Senado para trazer mais segurança ao setor audiovisual. O problema não está apenas no percentual cobrado ou nas cotas de conteúdo nacional. O problema está na arquitetura da lei.
O ponto mais grave é que os recursos arrecadados não vão para o Fundo Setorial do Audiovisual. Eles serão administrados pelas próprias plataformas estrangeiras que deveriam ser reguladas — e que, de fato, ainda não foram efetivamente reguladas. Isso transforma dinheiro público em dinheiro privado. A política cultural é terceirizada e privatizada. O Estado abre mão de sua função estruturante e entrega às empresas o poder de decidir o que é cultura nacional.
O Brasil é um dos mercados de streaming mais relevantes do mundo. É o segundo maior mercado da Netflix, com 20,6 milhões de assinantes, atrás apenas dos Estados Unidos. O país representa 8,3% do mercado global, movimentando R$ 49,5 bilhões por ano. Setenta e cinco por cento dos brasileiros acessam plataformas de streaming diariamente.
A penetração do streaming também é alta: 43,4% das casas brasileiras têm acesso a alguma plataforma, o que representa 32,7 milhões de domicílios e 95,1 milhões de pessoas. Os brasileiros assinam em média 3,8 plataformas, mais do que os americanos, que assinam duas. O gasto médio por assinante é de R$ 118 mensais.
O potencial de crescimento é enorme. O número de assinantes deve saltar de 60,2 milhões em 2023 para 85,4 milhões em 2028, segundo as previsões mais conservadoras do mercado — um avanço médio de 9,5% ao ano, acima dos cerca de 2,6% registrados nos últimos anos pelos EUA. O Brasil deve ser o terceiro maior mercado de streaming gratuito com publicidade até 2029, atrás apenas de EUA e Reino Unido.
Na América Latina, o Brasil lidera com folga o mercado de vídeo sob demanda (VOD). O país movimenta cerca de R$ 49,5 bilhões por ano, muito à frente do México, que gera R$ 16 bilhões, e da Argentina, com R$ 4,9 bilhões. Mas, em termos de exibição em salas de cinema, o México ainda é o maior mercado da região — possui mais de 7.400 salas ativas.
O Brasil, ao contrário, viu sua rede de salas encolher e sua presença cinematográfica perder força após quase uma década de ausência de políticas públicas estruturantes para o setor. A verdade é que, desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o país não retomou plenamente sua política de Estado para o audiovisual. O esvaziamento da ANCINE, a paralisia do Fundo Setorial e a descontinuidade das ações de fomento e preservação resultaram em uma década quase perdida para o cinema brasileiro — quase porque houve exceções brilhantes. Mas, no geral, a queda na produção média de filmes foi brutal.
É nesse contexto de fragilidade institucional que surge a atual lei do streaming — aprovada às pressas, sem debate amplo e sem o devido amparo público —, repetindo o mesmo ciclo de improviso que fez reduzir drasticamente a nossa produção doméstica de filmes.
Embora o México seja hoje o maior mercado de exibição cinematográfica da América Latina, enfrenta a mesma ausência de regulamentação do streaming que o Brasil. Por lá, nenhuma lei foi ainda aprovada, e as plataformas seguem atuando livremente, sem obrigações de investimento em conteúdo local nem contribuição para fundos públicos. Ou seja, a situação mexicana espelha a brasileira: países com indústrias criativas potentes, mas com arcabouços legais frágeis diante de conglomerados globais.
Com a aprovação apressada dessa lei, o Brasil não apenas se fragiliza internamente — pode também abrir um precedente perigoso para toda a América Latina. Se o modelo brasileiro for replicado sem correções, o continente inteiro corre o risco de institucionalizar a dependência cultural, entregando seu imaginário coletivo às plataformas transnacionais. A desregulamentação se torna um vírus regional: um neocolonialismo disfarçado de modernização, onde cada país negocia isoladamente sua própria fraqueza.
Portugal cobra os mesmos 4% mas o dinheiro é respeitado como recurso público, gerido pelo Instituto do Cinema e Audiovisual, e revertido integralmente para a cadeia: produção, salas, digitalização, formação e promoção internacional. O resultado foi crescimento de 35% na produção nacional entre 2020 e 2024, em plena pandemia.
A comparação com Portugal não é para nivelar o Brasil por baixo, mas para mostrar que mesmo em um país pequeno o modelo funciona porque há gestão pública e transparência. Aqui, o mesmo percentual se dilui e ainda é administrado pelas próprias plataformas.
A Europa tem 3.269 serviços de VOD, sendo 86% nacionais. O mercado europeu de vídeo sob demanda gerou 23 bilhões de euros em 2023, sendo 21,3 bilhões apenas em serviços por assinatura. O dado mais importante: 60% do financiamento do setor audiovisual europeu vêm de políticas públicas, segundo o European Audiovisual Observatory. O streaming europeu cresce com o Estado, não apesar dele.
A economia das séries
Uma série brasileira recente, Donos do Jogo, produzida por uma das 50 empresas que apoiaram a lei, custou cerca de R$ 70 milhões por oito episódios. Parece muito, mas não é. A série francesa Lupin, com Omar Sy, custou cerca de € 3,5 milhões por episódio. Nos EUA, séries como Breaking Bad custaram entre US$ 3 e 3,5 milhões por episódio, chegando a US$ 6 milhões nas últimas temporadas.
O Brasil produz barato. Mas mesmo quando uma série brasileira é exibida em mais de 130 países, o produtor local não ganha nada com isso. Recebe 10% do orçamento como taxa de serviço, mas não tem royalties nem participação nos lucros. Os direitos globais ficam integralmente com a plataforma. Resultado: o Brasil exporta criatividade e talento, mas importa lucro.
Direitos autorais e a memória do mundo
Os direitos autorais são o que fazem com que a arte perpetue e o artista se remunere. É o que explica por que os estúdios norte-americanos seguem poderosos: eles vivem de catálogos que geram renda há mais de cem anos. Um exemplo clássico é Cidadão Kane, de Orson Welles — um filme que arruinou a carreira do diretor, mas que até hoje rende milhões ao estúdio que o produziu. Quando uma produtora brasileira abre mão de seus direitos, está abrindo mão de sua sustentabilidade financeira e de um legado cultural duradouro.
Os BRICS e o silêncio das musas
A África do Sul, com PIB audiovisual de US$ 600 milhões, opera o Film Rebate Scheme, que devolve até 35% dos custos de produção e já atraiu mais de 120 produções internacionais desde 2018. Em 2024, o Brasil finalmente oficializou um acordo de coprodução com o país, pelas mãos da Spcine e da NFVF — um gesto político importante, mas tardio.
A Coreia do Sul investe cerca de US$ 5 a 6 bilhões por ano em políticas públicas de cultura, tem cotas obrigatórias de exibição de 73 dias por ano para filmes nacionais e oferece reembolsos de até 30%. O país ainda conta com uma indústria privada de audiovisual altamente competitiva, que alcançou cerca de US$ 13 bilhões em exportação de conteúdo em 2024.
A China tem 85 mil salas de cinema, fatura US$ 7,5 bilhões por ano e adota um modelo curioso: a cota não é para proteger o conteúdo nacional, e sim o estrangeiro. Apenas até 30% do catálogo das plataformas pode ser composto por produções internacionais; todo o restante é ocupado por conteúdo chinês. O sistema foi construído para garantir musculatura industrial e manter o lucro dentro do país.
Já a Rússia injeta cerca de US$ 200 milhões por ano no Russian Cinema Fund. Trata-se de um fundo público, financiado majoritariamente por recursos estatais, criado para sustentar a produção nacional. Ele concede financiamentos diretos, coproduções com estúdios privados e linhas de apoio específicas para animação, blockbusters e cinema de autor. É, em essência, uma política de Estado para organizar e proteger o mercado russo, garantindo previsibilidade e continuidade para seus produtores.
O Brasil, porém, é o único dos BRICS sem uma política cultural permanente. No silêncio das musas, a indústria definha.
50 produtoras e um segredo
Das mais de 12 mil produtoras registradas no país, apenas 50 apoiaram a lei aprovada na Câmara, a maioria concentrada entre Rio de Janeiro e São Paulo. Essas empresas tomaram a decisão sem consultar as associações das quais fazem parte.
O setor como um todo foi pego de surpresa.
O argumento era supostamente pragmático — “melhor garantir o mínimo do que esperar mais dez anos” —, mas o processo de decisão foi apressado e pouco transparente.
Logo muitos perceberam que a nova lei pode gerar prejuízos financeiros de longo prazo para todo o setor audiovisual no país, além de afetar nossa independência na produção e distribuição.
Poucos dias após a votação, a Videofilmes publicou nota afirmando que a assinatura havia sido feita sem o consentimento de João e Walter Salles, que se manifestaram publicamente contra o texto final. A reação dos irmãos Salles teve peso simbólico e moral, marcando um recuo importante dentro do próprio grupo que apoiou o projeto.
Cineastas e produtores centrais também se posicionaram contra a lei: Kleber Mendonça Filho, Ducca Rios, Laís Bodanzky, Sara Silveira e Valkyria Gomes mantiveram posição firme em defesa de uma regulamentação pública, transparente e comprometida com o fortalecimento do setor.
A projeção de arrecadação com a Condecine é de cerca de R$ 240 milhões por ano. Mas o problema não é apenas o valor — é para onde ele vai. Esses recursos não irão para o Fundo Setorial do Audiovisual. Serão administrados pelas próprias plataformas estrangeiras, as mesmas que ainda nem foram reguladas. A regulação entrega a chave da regulação às próprias empresas.
Entregar recursos públicos às plataformas significa abdicar da cadeia cultural completa. O país perde controle sobre sua memória, suas salas, seus festivais e cinematecas. O Brasil abre mão de decidir o destino do seu próprio imaginário.
Em um mercado tão relevante e em crescimento, o Brasil renuncia à sua própria soberania cultural justamente quando o debate sobre soberania volta a ocupar posição central na política nacional.
Por essas e outras razões, a lei precisa de ajustes profundos antes da aprovação no Senado.
É indispensável garantir que os recursos sejam públicos e geridos por instituições e empresas brasileiras — não por plataformas estrangeiras que ainda não foram devidamente regulamentadas pela democracia brasileira.
Ao aprovar uma lei que entrega sua produção cultural a plataformas estrangeiras, o Brasil se submete uma nova forma de colonialismo digital. E, como escreveu Frantz Fanon, “cada geração deve descobrir sua missão: cumpri-la ou traí-la.”