Receita desmonta engrenagem que ocultava tributos e lucros, desarticulando um conglomerado que acumulou mais de R$ 26 bilhões em dívidas e operou como devedor contumaz
A quinta-feira (27/11) começou com uma demonstração rara de articulação entre órgãos públicos para enfrentar um dos maiores esquemas de sonegação fiscal do país. A Receita Federal, com apoio da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e de instituições estaduais e municipais, deflagrou a Operação “Poço de Lobato”, mirando um conglomerado que, além de controlar parte relevante da cadeia de combustíveis, figura como o maior devedor contumaz do Brasil — acumulando mais de R$ 26 bilhões em dívidas tributárias.
Rede coordenada mira cinco estados e um grupo com poder nacional
Ao todo, 126 mandados de busca e apreensão foram cumpridos em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Distrito Federal e Bahia. A operação mobiliza servidores da Receita Federal, do Ministério Público de São Paulo, da Secretaria da Fazenda e Planejamento paulista, da Secretaria Municipal da Fazenda, da PGFN, da Procuradoria-Geral do Estado e das polícias Civil e Militar.
O alvo não é novo no radar das autoridades. O grupo investigado mantém vínculos financeiros com empresas e pessoas ligadas à Operação Carbono Oculto, realizada em agosto de 2025, e atua em praticamente todo o território nacional. Seu núcleo principal está no Rio de Janeiro, mas seus tentáculos atravessam do comércio varejista ao complexo sistema de importação de combustíveis.
Bloqueio bilionário e movimentações suspeitas revelam estrutura empresarial paralela
O Cira/SP e a PGFN obtiveram medidas judiciais que bloquearam mais de R$ 10,2 bilhões em bens — de imóveis a veículos — para garantir o pagamento dos tributos sonegados. A investigação aponta que o grupo movimentou mais de R$ 70 bilhões em apenas um ano, manipulando empresas próprias, fundos de investimento e offshores. Parte dessas operações era administrada internamente, por financeiras controladas pelos próprios investigados.
Os números impressionam: um único núcleo financeiro movimentou mais de R$ 72 bilhões entre o segundo semestre de 2024 e o primeiro semestre de 2025. Essa engrenagem funcionava por meio de uma empresa “mãe” que comandava diversas “filhas”, todas operando em cadeia para dificultar a identificação de beneficiários finais. As chamadas “contas-bolsão”, utilizadas à margem da transparência regulatória, permitiam esconder a origem e o destino dos valores.
Após o colapso de distribuidoras atingidas pela Carbono Oculto, o grupo reorganizou totalmente sua estrutura financeira. Operadores que antes manejavam cerca de R$ 500 milhões passaram a controlar mais de R$ 72 bilhões, demonstrando a agilidade e a audácia da organização em contornar ações de fiscalização.
Fraudes estruturadas: da importação ao posto de gasolina
As irregularidades permeavam toda a cadeia de combustíveis. Importadoras adquiriram, entre 2020 e 2025, mais de R$ 32 bilhões em nafta, hidrocarbonetos e diesel, sempre atuando como “laranjas” de formuladoras e distribuidoras ligadas ao grupo.
A mesma organização foi recentemente alvo da Operação Cadeia de Carbono, que reteve quatro navios transportando 180 milhões de litros de combustível. A ANP interditou uma refinaria após constatar situações graves: importações com falsa declaração de conteúdo, ausência de provas de refino, uso de aditivos não autorizados e indícios de adulteração do combustível repassado ao consumidor.
Além disso, formuladoras, distribuidoras e postos ligados ao grupo praticavam sonegação sistemática, ampliando a concorrência desleal em um setor já marcado pela pressão tributária e pela falta de transparência.
Blindagem e lavagem: fundos, offshores e patrimônio oculto
A blindagem financeira seguia um padrão sofisticado. A Receita identificou 17 fundos ligados ao grupo, somando patrimônio líquido de R$ 8 bilhões. Muitos são fundos fechados com apenas um cotista — geralmente outro fundo — criando um labirinto contábil projetado para dificultar rastreamento. Há fortes indícios de conivência das administradoras responsáveis pelos fundos, que teriam omitido informações às autoridades fiscais.
A análise também identificou a participação de offshores registradas em Delaware, nos Estados Unidos, jurisdição conhecida pelo sigilo societário. Essas estruturas permitiam que os investigados não fossem tributados nem nos EUA nem no Brasil. O uso de empresas estrangeiras não parava aí: uma exportadora sediada em Houston, Texas, forneceu mais de R$ 12,5 bilhões em combustíveis ao conglomerado entre 2020 e 2025.
Pelo menos 15 offshores norte-americanas foram rastreadas, todas remetendo recursos para a compra de imóveis e participações societárias no Brasil, ultrapassando R$ 1 bilhão. Também foram identificados mais de R$ 1,2 bilhão enviados ao exterior como supostos contratos de mútuo, que depois retornavam ao país sob a fachada de investimentos estrangeiros — fechando um ciclo típico de lavagem internacional.
Nome simbólico remete às origens do petróleo brasileiro
O batismo da operação resgata um marco histórico: o Poço de Lobato, perfurado em 1939 no bairro homônimo de Salvador. O local simboliza o início da exploração petrolífera no país. Ao escolher o nome, os investigadores fizeram um paralelo direto entre a atividade legítima que marcou a industrialização brasileira e o esquema fraudulento de uma empresa inserida no mesmo setor, mas que se consolidou como um dos maiores sonegadores do país.
O avanço da Operação “Poço de Lobato” sinaliza uma guinada importante em um setor frequentemente dominado por interesses privados de alto poder econômico e político. Ao mirar um grupo que operou durante anos à sombra de regulações frágeis e de brechas legais, o Estado brasileiro demonstra que, quando instituições trabalham de forma coordenada e transparente, é possível enfrentar mesmo os maiores devedores — e proteger tanto a arrecadação quanto o consumidor final.