A desvalorização de US$ 1 trilhão no mercado global levou empresas antes entusiastas das criptos a vender reservas digitais para tentar conter a queda acelerada de suas ações
A onda de euforia que transformou empresas em verdadeiras “tesourarias de ativos digitais” perdeu força de maneira dramática. Com uma desvalorização de US$ 1 trilhão varrendo o mercado global de criptomoedas, companhias que apostaram pesado nesse modelo agora enfrentam uma realidade desconfortável: para evitar um colapso ainda maior no valor de suas ações, muitas estão correndo para se desfazer justamente dos tokens que antes simbolizavam seu motor de crescimento.
Empresas pressionadas recorrem à venda de reservas digitais
O recuo do setor é tão intenso que empresas conhecidas por acumular criptomoedas começaram a liquidar parte de seus estoques numa tentativa de sustentar o próprio valor de mercado. O caso mais emblemático é o da Strategy, comandada por Michael Saylor, que durante anos foi símbolo da narrativa de que o bitcoin poderia funcionar como reserva de valor corporativa. Nos últimos três meses, porém, as ações da gigante — maior detentora corporativa de bitcoin do planeta — despencaram 50%, puxando para baixo dezenas de imitadoras que seguiram seu modelo.
O estrago é profundo: cerca de US$ 77 bilhões evaporaram do valor de mercado dessas empresas desde o pico de US$ 176 bilhões registrado em julho, segundo dados do setor publicados pelo The Block. A Strategy agora vale menos do que os próprios bitcoins que possui, alimentando temores entre investidores de que o “círculo virtuoso” baseado em valorização contínua das criptomoedas e emissão massiva de ações e dívidas tenha chegado ao fim.
Para Adam Morgan McCarthy, analista sênior da Kaiko, a turbulência deve se intensificar. “Vai haver uma liquidação generalizada nessas empresas; a situação vai piorar”, afirmou. “É um ciclo vicioso. Assim que os preços começarem a despencar, será uma corrida para o fundo do poço.”
Setor que surfou na euforia agora enfrenta reversão brusca
O movimento da Strategy havia inspirado grupos tão diversos quanto produtoras de cinema, fabricantes de cigarros eletrônicos e empresas de veículos elétricos. A entrada agressiva dessas companhias no mercado cripto foi um dos fatores que ajudaram o bitcoin a alcançar seu recorde histórico no mês passado. Mas a onda virou.
A nova fase de vendas intensas atingiu o setor em cheio durante o outono, num momento de forte fuga de ativos especulativos. É uma reviravolta amarga para um mercado que, há apenas um ano, festejava promessas do então presidente Donald Trump de transformar os Estados Unidos em uma “superpotência do bitcoin”.
No Japão, a Metaplanet — maior detentora de bitcoins do país — viu suas ações caírem 80% desde o pico alcançado em junho. Nesta semana, a empresa levantou um empréstimo de US$ 130 milhões garantido por sua reserva de bitcoins, que deve ser utilizado, entre outras finalidades, para recompra de ações. No Reino Unido, a Smarter Web Company amarga uma queda de 44% no ano; seu valor de mercado é de apenas £ 132 milhões, enquanto suas reservas de bitcoin somam cerca de US$ 232 milhões.
Para Jake Ostrovskis, chefe de negociação OTC da Wintermute, o desfecho era previsível. “Era inevitável”, disse. “Chegou a um ponto em que havia ações demais.”
Vendas de tokens se tornam estratégia de sobrevivência
Com a pressão aumentando, empresas passaram a vender suas criptomoedas para financiar programas de recompra e tentar conter a queda de suas ações. A FG Nexus, sediada na Carolina do Norte e detentora de Ether, vendeu recentemente cerca de US$ 41,5 milhões em tokens para manter seu plano de recompras. Apesar de ter valor de mercado de US$ 104 milhões, suas reservas da criptomoeda valem mais — cerca de US$ 116 milhões.
A ETHZilla, empresa de ciências biológicas da Flórida, seguiu o mesmo caminho, vendendo aproximadamente US$ 40 milhões em Ether para reforçar o caixa destinado à recompra de ações.
Em um cenário ainda mais delicado, a francesa Sequans Communications precisou vender cerca de US$ 100 milhões em bitcoins para quitar dívidas — um sinal claro de como empresas que recorreram a empréstimos para financiar compras de criptos agora enfrentam dificuldades crescentes. A empresa vale US$ 87 milhões na bolsa, enquanto suas reservas de bitcoin somam cerca de US$ 198 milhões. Para o diretor executivo Georges Karam, a venda foi uma “decisão tática com o objetivo de desbloquear o valor para os acionistas, dadas as condições atuais do mercado”.
Analistas alertam que empresas com tokens de nicho podem enfrentar obstáculos ainda maiores. Morgan McCarthy lembra que a liquidez é limitada para ativos pouco conhecidos: “Quando uma empresa de dispositivos médicos compra um ativo de nicho em criptomoedas, um ativo de nicho dentro de um mercado de nicho, o resultado não será bom”, afirma, estimando que 95% dos ativos digitais “chegarão a zero”.
Strategy insiste na aposta mesmo com risco de exclusão de índices
Enquanto muitas companhias correm para reduzir exposição, a Strategy segue em direção oposta. Mesmo após o bitcoin cair de US$ 115 mil para US$ 87 mil em um mês, a empresa comprou ainda mais tokens — uma decisão que ocorre em meio ao risco de ser excluída de alguns dos principais índices acionários, o que poderia gerar nova onda de pressão sobre suas ações.
Saylor, sempre vocal em defesa do bitcoin, minimizou as preocupações. “A volatilidade é um presente de Satoshi para os fiéis”, disse nesta semana, evocando o criador pseudônimo da criptomoeda.
Num momento em que milhares de investidores comuns veem a turbulência com apreensão, a frase soa como um lembrete de que a fé no mercado cripto nunca foi consenso — e que, quando o ciclo vira, são justamente os mais expostos que pagam o preço mais alto.
Com informações de Financial Times*