Marion Nestle analisou a influência das corporações nos sistemas alimentares e defendeu decisões públicas firmes para proteger a saúde e garantir comida de qualidade
Em uma discussão marcada pela franqueza e pela defesa de políticas públicas robustas, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) recebeu, na última sexta-feira (28.11), a professora e pesquisadora Marion Nestle, referência mundial nos debates sobre alimentação, poder corporativo e saúde pública. A presença da acadêmica norte-americana, doutora em Biologia Molecular e professora emérita da Universidade de Nova York, trouxe novos elementos para a reflexão sobre os rumos da política alimentar brasileira.
Autora de obras que denunciam a influência das grandes multinacionais na definição do que chega ao prato das famílias — entre elas “Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos” — Marion foi o centro de uma roda de conversa que tratou dos desafios impostos pelos ultraprocessados e do papel do Estado na garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada.
Corporações, lobby e riscos à saúde pública
Ao abrir sua fala, Marion Nestle apresentou um retrato preocupante da realidade dos Estados Unidos, onde grandes corporações de alimentos ultraprocessados investem fortemente em lobby para impedir que governos adotem regulações capazes de reduzir seu domínio de mercado.
Segundo a pesquisadora, esse movimento é esperado: “As corporações só estão fazendo o trabalho delas, que é vender seu produto – os ultraprocessados – e garantir um lucro cada vez maior para seus acionistas. Cabe a nós, como sociedade, trabalhar para que as políticas públicas deem conta de educar cada vez mais as pessoas sobre os riscos reais do consumo desse tipo de produto”.
Em sua análise, Marion destacou ainda que o marketing agressivo e os conflitos de interesse distorcem pesquisas científicas e influenciam decisões governamentais, moldando escolhas alimentares que tendem a prejudicar principalmente populações mais vulneráveis.
Alimentação é política — e exige decisões firmes
A pesquisadora enfatizou que a comida deve ser tratada como uma questão política e social, e não apenas nutricional. Para ela, é necessário encarar as causas estruturais do problema, que envolvem ambientes alimentares desregulados e sistemas de produção alinhados aos interesses de grandes indústrias.
Marion relatou também a experiência que vivenciou dias antes em Manaus (AM), onde conheceu ações voltadas à promoção da alimentação saudável nas escolas. “Levar alimentos saudáveis para dentro da escola é reforçar para as crianças exemplos do que é comida de verdade. Quando a indústria introduz os ultraprocessados na merenda escolar, ela quer fazer com que o consumo desses produtos faça parte dos hábitos de consumo diário das crianças, passando inclusive por cima da autoridade dos pais”, afirmou.
Governo apresenta políticas públicas para transformar o ambiente alimentar
A secretária nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do MDS, Lilian Rahal, apresentou um panorama das iniciativas em andamento para promover o Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável. Ela destacou:
- O Decreto com diretrizes para alimentação saudável nas escolas;
- O Decreto que institui a Cesta Básica de Alimentos, destacando itens in natura, minimamente processados e da sociobiodiversidade — e excluindo ultraprocessados;
- A Estratégia Alimenta Cidades, voltada especialmente aos territórios marcados por “pântanos alimentares” (alta oferta de ultraprocessados) e “desertos alimentares” (escassez de alimentos saudáveis).
Essa estratégia vem sendo construída com diversos municípios, buscando ampliar o acesso a comida de qualidade e reequilibrar a relação entre oferta e demanda nos centros urbanos. Lilian também mencionou o Marco de Referência para Sistemas Alimentares e Clima, ferramenta essencial para alinhar políticas alimentares às metas ambientais.
Segundo a secretária, o Brasil vive um momento decisivo: após deixar novamente o Mapa da Fome, graças ao Plano Brasil Sem Fome, o país enfrenta o desafio de não retroceder — ao mesmo tempo em que precisa ampliar a promoção da alimentação saudável. Nesse caminho, o recém aprovado Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional será peça central. “A nossa resposta política é ampliar a discussão, mudando o foco da responsabilidade individual para os Determinantes Comerciais e para o papel do Estado”, afirmou.
Sociedade civil é peça-chave no enfrentamento às corporações
A presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Elizabetta Recine, reforçou que a luta por alimentação adequada só avança com a união entre governo e sociedade civil organizada. Ela alertou para o risco da captura das agendas de alimentação saudável e mudanças climáticas por interesses privados. “Todo momento histórico é desafiador, mas a captura dessas agendas traz um enorme desafio para que a gente pactue um processo de enfrentamento ao que está sendo posto, sem precedentes”, destacou.
Um debate necessário sobre comida, poder e políticas públicas
O encontro, mediado por Paula Johns, diretora-geral da ACT Promoção da Saúde, foi promovido em parceria entre o MDS, o portal O Joio e o Trigo e a ACT Promoção da Saúde. A atividade buscou aprofundar a discussão sobre como o Estado pode enfrentar o poder das corporações alimentícias e garantir que políticas públicas coloquem a saúde — e não o lucro — no centro da agenda.
Para o Brasil, que vive um processo de reconstrução de suas políticas de segurança alimentar, a visita de Marion Nestle trouxe reflexão e impulso: reafirmou a necessidade de enfrentamento aos ultraprocessados e fortaleceu a defesa de um ambiente alimentar que proteja as pessoas, especialmente as mais vulneráveis. Porque comida saudável, lembrou a pesquisadora, é um direito — e, também, uma responsabilidade coletiva.