O governo federal anunciou a criação de um Grupo de Trabalho (GT) Interministerial destinado a elaborar propostas para garantir condições mais dignas aos entregadores de aplicativos em todo o país. A iniciativa busca enfrentar problemas que há anos impactam a categoria — como baixa remuneração, ausência de proteção social, jornadas longas e instabilidade no acesso ao trabalho — e marca um novo movimento do Executivo para regular relações laborais mediadas por plataformas digitais.
A portaria que institui o GT foi assinada simbolicamente pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Guilherme Boulos, em ato realizado ao lado de entregadores. A medida envolve a Secretaria-Geral, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). Também foram convidados para as discussões representantes das cinco regiões do país, entidades sindicais e órgãos do sistema de Justiça.
GT reunirá governo, Justiça e trabalhadores
Além dos três ministérios responsáveis pela coordenação, o grupo contará com representantes do Tribunal Superior do Trabalho (TST), do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério da Saúde. A Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que debate atualmente a regulamentação do trabalho em plataformas, também foi convidada a acompanhar o processo, reforçando o diálogo entre os poderes.
Segundo o governo, o GT terá um prazo inicial de 60 dias, prorrogável, para apresentar propostas. A Secretaria-Geral será responsável por indicar o coordenador das discussões e organizar as reuniões com trabalhadores, especialistas e representantes das empresas.
Em entrevista concedida ao lado de entregadores, Boulos afirmou que o objetivo central é reduzir desigualdades e corrigir desequilíbrios entre trabalhadores e aplicativos.
“É preciso remunerar, decentemente, esses trabalhadores que muitas vezes levam comida para a nossa casa, para a casa de todo mundo, com fome, porque não têm um ponto de parada para almoçar, porque o salário não é suficiente para que comam nos restaurantes dos quais eles transportam as comidas para a casa de cada um. Então, é preciso ter uma consciência humana”, declarou.
Remuneração mínima, seguro e transparência nos algoritmos entram na pauta
Guilherme Boulos destacou três eixos prioritários informados pelos próprios entregadores durante o processo de criação do grupo:
1. Estabelecimento de um ganho mínimo
Um mecanismo de remuneração mínima para a categoria é visto como fundamental para enfrentar a queda de rendimentos observada na última década. Segundo o ministro, muitos entregadores “trabalham demais e ganham pouco”.
2. Criação de seguro ou proteção previdenciária
Outro ponto é a formulação de um instrumento de proteção social que garanta cobertura em caso de acidentes, doenças, invalidez ou interrupção involuntária do trabalho — lacunas que hoje afetam de forma crítica a categoria.
3. Transparência nos algoritmos das plataformas
Boulos chamou atenção para o poder dos algoritmos na definição das dinâmicas de oferta de entregas, remuneração e avaliação dos trabalhadores:
“Tanto os motoristas como os entregadores hoje são comandados pelo algoritmo, que inclusive utilizam seus dados, mas não há nenhuma transparência nesse algoritmo. É uma demanda dos trabalhadores que haja essa transparência”, afirmou.
O governo pretende, segundo auxiliares, iniciar uma discussão técnica sobre como regular o uso desses sistemas, que hoje funcionam como centrais de gestão digital sem supervisão pública.
Entregadores reforçam urgência por direitos básicos
A participação direta dos entregadores no ato de criação do GT foi apresentada pelo governo como sinal de que a construção das propostas será feita em diálogo constante com quem vive a rotina das ruas. Nicolas dos Santos, entregador convidado para a assinatura simbólica da portaria, destacou a importância de políticas que assegurem condições mínimas de vida:
“Para a gente conseguir acesso a trabalho digno, moradia digna, condição de ter a educação para os nossos filhos, a gente precisa receber dignamente”, afirmou.
A categoria reivindica também mecanismos de descanso seguro, acesso a banheiros, pontos de apoio e revisão das taxas cobradas por plataformas em casos de cancelamentos ou longas esperas.
Desafios estruturais e expectativa para os próximos 60 dias
Os entregadores de aplicativos ocupam hoje um papel central na economia urbana, atuando em serviços essenciais como alimentação, transporte de pequenas encomendas e logística de última milha. No entanto, enfrentam condições marcadas por:
- jornadas que ultrapassam 10 a 12 horas diárias;
- variações bruscas na remuneração;
- inexistência de contratos formais;
- falta de acesso a benefícios previdenciários;
- custos operacionais elevados, como combustível, manutenção e equipamentos.
Desde a expansão das plataformas, iniciada sobretudo após 2016 e intensificada durante a pandemia, esses trabalhadores passaram a compor um dos segmentos mais precarizados do mercado de trabalho.
O GT pretende, nos próximos dois meses, formular uma proposta que concilie inovação tecnológica com segurança jurídica, previsibilidade, proteção social e renda digna. O governo avalia que a regulamentação deve impedir retrocessos, mas também preservar o dinamismo do setor.
Nos bastidores, interlocutores da Secretaria-Geral afirmam que o Executivo quer apresentar um texto maduro ao Congresso, incorporando experiências internacionais e evitando soluções que possam ser facilmente contestadas judicialmente.