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As estratégias de EUA e China para América Latina no século XXI

Documentos estratégicos revelam projetos divergentes de poder, com Washington reforçando uma lógica securitária e Pequim propondo integração ao Sul Global A publicação quase simultânea, em dezembro de 2025, da National Security Strategy of the United States of America e do Terceiro Documento sobre la Política de China hacia América Latina y el Caribe é revelador […]

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Enquanto os Estados Unidos priorizam controle e contenção, a China insere a região em uma narrativa de multipolaridade e reforma da ordem global.
A América Latina surge como território-chave na disputa entre a reafirmação imperial dos EUA e a diplomacia chinesa de desenvolvimento compartilhado / Reprodução

Documentos estratégicos revelam projetos divergentes de poder, com Washington reforçando uma lógica securitária e Pequim propondo integração ao Sul Global


A publicação quase simultânea, em dezembro de 2025, da National Security Strategy of the United States of America e do Terceiro Documento sobre la Política de China hacia América Latina y el Caribe é revelador do momento de uma transição sistêmica acelerada e de disputa cada vez mais explícita pelos contornos da ordem internacional emergente. Embora ambos os documentos se inscrevam em tradições estratégicas longamente consolidadas, eles expressam projetos de poder profundamente distintos para a América Latina.

De um lado, os Estados Unidos reafirmam uma visão hemisférica hierárquica, securitária e de contenção de rivais. De outro, a China articula um discurso de cooperação Sul–Sul, desenvolvimento compartilhado e construção de uma “comunidade de futuro compartilhado”, inserindo a região num vocabulário alternativo ao da ordem liberal ocidental.


1. “America First” e a reatualização do poder imperial

A Estratégia de Segurança dos EUA explicita, sem ambiguidades, que o interesse central de Washington é “assegurar que o Hemisfério Ocidental permaneça razoavelmente estável e bem governado para prevenir e desencorajar a migração em massa para os Estados Unidos”, garantir a cooperação regional no combate ao narcotráfico e ao crime transnacional, manter o hemisfério “livre de incursão estrangeira hostil”, preservar o controle sobre cadeias críticas de suprimento e assegurar o acesso norte-americano a localizações estratégicas.

Ao anunciar a intenção de “afirmar e fazer valer um ‘Corolário Trump’ à Doutrina Monroe”, o documento não apenas reafirma uma tradição imperialista que parte desta Doutrina, passa pelos golpes sob a Doutrina de Segurança Nacional e culmina na atual política de Trump.

A América Latina, tratada como zona geoestratégica a ser estabilizada, controlada e protegida, sob alegação das “ameaças” relacionadas a migrações, cartéis, crime organizado, governos considerados hostis ou inclinados à aproximação com potências rivais, como a China. Daí a a narrativa que legitima a presença, a vigilância e, se necessário, o intervencionismo.

Ora, o léxico da “America First”, voltado a recuperar a condição de “o país mais forte, rico, poderoso e bem-sucedido do mundo”, implica a reafirmar o que consideram seus “interesses vitais”. Para tanto, a prioridade hemisférica articula-se com a noção de que “a era da migração em massa acabou” e de que o controle de fronteiras tornou-se “elemento primário da segurança nacional”.

Paralelamente, o documento rejeita o multilateralismo e instituições que “diluem a soberania”, reafirmando a centralidade do Estado nacional, norte-americano, diga-se.

Essa defesa da soberania, contudo, convive com a afirmação de que os Estados Unidos não permitirão que nenhuma outra potência se torne dominante em nível global ou regional. Nada novo no front, pois a soberania interna sempre conviveu com o poder extraterritorial, mesmo que por vezes enfatizando, seletivamente, a “ordem mundial baseada em regras”.

Dessa forma, a lógica é essencialmente defensiva e securitária, sem que a América Latina tenha qualquer relevância como portadora de projetos próprios ou como parte da integração do continente.

Como os Estados Unidos expressam o núcleo do declínio do Ocidente tratado por Todd, torna-se possível compreender o documento estratégico norte-americano como sintoma de uma potência cuja capacidade de reproduzir seus fundamentos materiais e simbólicos de hegemonia está se estreitando rapidamente.

A radicalização do excepcionalismo, a ênfase no MAGA e a reatualização da Doutrina Monroe não expressam autoconfiança, mas antes a angústia estratégica de um centro incapaz de sustentar sua liderança, enquanto se evidenciam a perda de liderança no setor produtivo e a fragilidade da coesão social. O Corolário Trump à Doutrina Monroe é precisamente a manifestação contemporânea dessa lógica defensiva e regressiva.


2. A China e seu projeto de globalização alternativo

Em contraste, o documento chinês tem situado a América Latina e o Caribe como parte constitutiva do Sul Global e como “força relevante para defender a paz e a estabilidade do mundo e promover seu desenvolvimento e prosperidade”. A região é caracterizada como detentora de uma “gloriosa tradição de independência e autofortalecimento mediante a unidade”, sendo considerada “indispensável” ao processo de multipolarização e à reconfiguração da globalização contemporânea.

Nesse horizonte, ALC figura não como área de contenção, mas como ator necessário em um projeto mais amplo de reforma da governança global e construção de uma ordem multipolar. Não por acaso, o governo chinês reagiu firmemente a declarações que retomavam a noção de “quintal” dos EUA, reafirmando que nenhum país deve ser reduzido à condição de apêndice geopolítico de potências hegemônicas.

O eixo normativo da política chinesa para a região é distinto e se ancora em quatro iniciativas globais (IDG, ISG, ICG e IGG) que sintetizam o projeto chinês de oferecer bens públicos internacionais alternativos aos do Ocidente, combinando desenvolvimento, segurança, diálogo civilizacional e reforma institucional.

O discurso é ancorado nos “valores comuns da humanidade”, na ideia de “política externa independente e de paz” e no compromisso com uma globalização “universalmente benéfica e inclusiva”. A noção de “comunidade de futuro compartilhado da humanidade”, central ao pensamento diplomático chinês contemporâneo, se estrutura em torno dos princípios de igualdade, benefícios mútuos e abertura.

Nesse sentido, a BRI se situa, como destacamos no livro A China e a Nova Rota da Seda, como um projeto de globalização alternativo àquela liderada pelos Estados Unidos sob o signo do neoliberalismo e do intervencionismo.

O documento enfatiza ainda que as relações China–ALC “não se dirigem contra nenhuma terceira parte”, abrindo espaço inclusive para cooperções tripartites com países extrarregionais, desde que os projetos sejam protagonizados por países latino-americanos. A integração regional, através da CELAC, é valorizada como plataforma autônoma para a relação birregional, em contraste com a prática norte-americana de fragmentar a região segundo interesses estratégicos específicos.

Recentemente, a China propôs prra o subcontinente os Cinco Programas (solidariedade, desenvolvimento, civilizações, paz e povos) que articulam agendas de alto nível político, integração infraestrutural, cooperação tecnológica, intercâmbios culturais, segurança não tradicional, combate à pobreza e fortalecimento de capacidades estatais.

Esse arcabouço dialoga com as iniciativas globais chinesas, projetando na América Latina um modelo de engajamento que combina pragmatismo econômico, diplomacia cultural e uma narrativa de respeito mútuo e ganho compartilhado.

É claro que a China tem interesses voltados a abrir mercados, internacionalizar empresas, ampliar sua presença tecnológica e disputar espaços internacionais. No entanto, o enquadramento material e simbólico é completamente distinto, voltado a amplas consultas diplomáticas, ampliação dos investimentos, realização de grandes obras, promoção do comércio e desenvolvimento de cooperação institucional em vários âmbitos.

Ou seja, apesar das assimetrias, as relações sino-latino-americanas revelam padrões de relacionamento radicalmente diferentes daqueles das antigas metrópoles coloniais e das potências imperialistas.


Palavras finais: a América Latina diante da transição sistêmica

A comparação entre os documentos revela que Estados Unidos e China projetam sobre a América Latina visões de mundo, relações materiais, paradigmas de ordem e regimes de legitimidade profundamente divergentes. A estratégia excepcionalista dos Estados Unidos inscreve-se na longa duração de uma geopolítica de tutela imperial hemisférica, agora revestida de urgências securitárias e de uma presunção imperial sem qulauqer veleidade.

A política chinesa, por sua vez, situa a América Latina como parceira no esforço de remodelar a governança internacional, fortalecer o Sul Global e promover desenvolvimento regional. Apesar dos interesses nacionais próprios e assimetrias estruturais, intrínseco às relações interestatais, a China abre possibilidades inéditas para que os países latino-americanos.

Ou seja, a América Latina pode converter a presença chinesa em oportunidade estratégica, reforçando sua integração regional, diversificando parcerias, ampliando sua capacidade estatal e formulando projetos autônomos de desenvolvimento. Ressalte-se, contudo, que dada a prioridade estratégica dos EUA e a política de Trump, os riscos também se ampliam.


Diego Pautasso – Doutor (2010) e Mestre (2006) em Ciência Política e Graduado (2003) em Geografia pela UFRGS. É professor do Colégio Militar de Porto Alegre, co-criador do projeto de difusão científica @fiosdechina (Instagram) e diretor de pesquisas do Centro de Estudos Avançados Brasil-China (CEBRACh).

Autor dos livros Imperialismo – ainda faz sentido na Era da Globalização?; A China Atual No Legado De Mao Tsé-tung; e China e Rússia no Pós-Guerra Fria, bem como co-autor de A China e a Nova Rota da Seda; Teoria das Relações Internacionais: contribuições marxistas; e de Domenico Losurdo: crítico do nosso tempo.

E-mail: dgpautasso@gmail.com

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