A corrida tecnológica dos EUA expõe a dependência do Sul Global e a urgência de políticas públicas para democratizar a IA
O anúncio de que a Nvidia poderá investir até US$ 100 bilhões na OpenAI não é apenas mais uma manchete sobre o avanço da inteligência artificial. É um sinal inequívoco de que estamos diante de uma nova fase da concentração de poder tecnológico — e, por consequência, político e econômico — nas mãos de poucas corporações norte-americanas. Enquanto os mercados celebram esse movimento com recordes históricos no S&P 500 e no Nasdaq, é urgente questionar: para quem, afinal, serve esse “salto” tecnológico?
A parceria entre a fabricante de chips mais valiosa do mundo e a criadora do ChatGPT consolida um duopólio que define os rumos da IA global. Jensen Huang e Sam Altman falam em “infraestrutura sem precedentes”, “produtos que as pessoas queiram usar” e “pesquisas de alta qualidade”. Mas o que fica em segundo plano — ou simplesmente ausente — é qualquer menção à soberania tecnológica, à equidade no acesso, ou à responsabilidade democrática sobre as tecnologias que estão moldando o futuro do trabalho, da educação e até da própria democracia.
Vale lembrar que, enquanto a Nvidia ultrapassa os US$ 4,5 trilhões em valor de mercado — mais do que o PIB de muitos países —, o Federal Reserve reconhece que o mercado de trabalho nos EUA está “esfriando”. Há um contraste gritante entre a euforia dos investidores e a realidade de milhões de trabalhadores enfrentando insegurança econômica. A IA, nesse contexto, não surge como ferramenta de emancipação coletiva, mas como motor de acumulação privada, impulsionada por subsídios estatais, infraestrutura pública e, muitas vezes, pela exploração de dados alheios sem consentimento.
Além disso, o projeto de construir data centers com capacidade de gerar 10 gigawatts de energia — equivalente ao consumo de 8 milhões de lares — levanta sérias questões ambientais e geopolíticas. Em um momento de crise climática, onde a transição energética é urgente, qual será a matriz energética dessas instalações? Será ela limpa, descentralizada e sustentável — ou dependerá de fontes fósseis e de cadeias de suprimento que reproduzem desigualdades globais?
Mais preocupante ainda é o fato de que essa corrida tecnológica está sendo liderada quase exclusivamente por atores dos Estados Unidos. A hegemonia norte-americana na IA não é apenas econômica; é também ideológica. Os valores embutidos nesses sistemas — desde algoritmos de moderação até decisões automatizadas em saúde e crédito — refletem visões de mundo moldadas por Silicon Valley, frequentemente alheias às realidades de países do Sul Global. Enquanto isso, nações como o Brasil, Índia ou África do Sul seguem dependentes de infraestrutura, hardware e modelos de linguagem desenvolvidos no exterior, sem capacidade plena de regular ou adaptar essas tecnologias às suas necessidades sociais.
Não se trata de negar o potencial transformador da inteligência artificial. Ao contrário: é justamente por seu enorme poder que ela não pode ser deixada nas mãos de poucas empresas cujo único norte é o lucro acionário. Precisamos de um novo paradigma — um que coloque a soberania digital, a justiça algorítmica e o bem comum no centro da agenda tecnológica. Isso exige investimento público em pesquisa independente, regulação robusta e cooperação internacional para evitar que a IA se torne mais uma ferramenta de dominação global.
O futuro da inteligência artificial não deve ser decidido em reuniões fechadas entre CEOs em estúdios da CNBC, mas em fóruns democráticos, com participação de trabalhadores, pesquisadores, movimentos sociais e governos comprometidos com a equidade. Até lá, cada novo recorde da Nvidia será também um lembrete: a tecnologia avança, mas nem sempre para todos.
Leia também:
A esquerda e a política como espetáculo
Rússia expõe fragilidade da Ucrânia após ameaça de Zelensky
Do dedo perdido à democracia encontrada: Lula e a Jornada do Herói


Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!